quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Descobrindo a serventia da língua

Confesso que já tinha visto algumas vezes nas prateleiras da Paulinas o livro Girafa não serve para nada, de José Carlos Aragão, ilustrado por Graça Lima, e nunca me decidira por ele. Até que outro dia resolvi trazê-lo para casa. Que bom! Minha demora em lê-lo me preparou para apreciá-lo melhor. Aragão, um escritor mineiro que já me encantara em Trem chegou, trem já vai, faz um relato poético de como um menino - que suponho ser ele, o autor - tomou contato com a língua e foi desamarrando a camisa de força imposta por ela. Sua poesia, com certeza, vem desse embate com a língua, que lhe permitiu um novo e pessoal uso das palavras. Brincando de descobrir a serventia das coisas, Aragão experimenta novos significados para palavras prosaicas, como pedra, chuva, trem, relógio e ovo. Significados poéticos, como o dado para relógio - "caixa de guardar tempo perdido, casa para passarinho que perdeu o voo" - que vão ampliando seu olhar para o mundo e o libertando da tirania da língua, em sua busca do mais amplo uso das coisas. "Com o tempo, as respostas que me davam. além de incompletas, foram ficando vazias de importância. Descobrir por conta própria o uso de cada coisa foi ficando muito mais interessante que ganhar uma resposta já prontinha e embrulhada para presente", escreve Aragão, em Girafa não serve para nada. Ao ler o livro lembrei-me de minha estranheza, quando criança, diante das imposições da língua, que me fazia perguntar a meus pais o porque de cada coisa ter um determinado nome. Estranheza igual a de Marcelo, Marmelo, Martelo, clássico de Ruth Rocha, que encontra em  Girafa não serve  para nada nova e original tradução. Livros como este mostram como o prazer com a leitura deve ser construído à margem do processo de aquisição da língua, que, na maioria das vezes, é muito penoso para as crianças, como foi para mim. Ler não deve ter a ver com aprender português. A leitura literária tem a ver com a descoberta de que é possível encontrar na língua um universo maior do que nos propõem os gramáticos, capaz de nos fazer encarar o desafio de traduzir nossos sentimentos e impressões, apesar das limitações da palavra escrita. Aragão fez a sua parte. Que nós - pais, escola e Estado - sejamos capazes de fazer a nossa, para que nossos filhos percebam que o uso criativo da língua constrói um mundo de sutilezas e de liberdade e que, ao o atravessarmos, nos tornamos mais humanos.