segunda-feira, 20 de maio de 2013

Uma conversa tête-à-tête com Clarice


A resistência do Antônio em aceitar novas histórias para seu repertório, já citada aqui algumas vezes, está sendo quebrada pelas visitas semanais de sua turma à biblioteca da escola. Até o ano passado, na educação infantil, ele frequentava uma aconchegante sala de leitura, em que livros dividem espaço com bonecos. Agora, no fundamental, sua turma frequenta uma biblioteca em uma torre, com estantes repletas de livros que cobrem as paredes da sala até o teto. Das janelas, vê-se uma bela vista. Mas o Antônio, ainda baixinho, só tem olhos para os livros. São tantos e com tantas histórias que ele faz planos de trazê-los para casa. Toda semana vem com um livro novo para lermos juntos. A leitura é sempre um prazer, que nas últimas semanas ganhou mais uma alegria, com a aventura da decodificação das primeiras letras. Uma graça sua leitura. Ela vem esbarrando em dois erres, dois esses, cês, agás, cedilhas e outras trapaças do nosso português, mas não desiste de tentar. O dia todo lê o que lhe passa pela frente e nos chama para comunicar sua mais nova conquista. Deitado na cama, ouvindo histórias, a vontade de ler cresce, mas vida de iniciante não é fácil. A letra cursiva, a opção editorial da maior parte dos livros, acrescenta um novo desafio às crianças em fase de alfabetização, que ainda estão lidando com a letra de forma, ou bastão. Mas o Antônio não desiste nunca e consegue ler algumas poucas palavras, em meio a leituras incompreensíveis. Assim foi com A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, editado pela Rocco Jovens Leitores, e ilustrado por Flor Opazo, que tiramos da nossa estante mesmo. Antônio adiantou-se para ler ele mesmo e, com a maior segurança, saiu falando uma série de fonemas desconexos. Em meio a uma língua estranha, emplacou algumas palavras  em português. Satisfeito com sua performance, entregou-me o livro e passou a acompanhar com interesse minha leitura. O Pedro, que já conhecia a história, juntou-se a nós para ouvi-la mais uma vez. Deitada ao lado do Antônio, comecei a ler: "A mulher que matou os peixes, infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer". Logo nas primeiras frases do conto, Clarice mostra que vai travar um diálogo franco com seus leitores. As crianças são as suas interlocutoras e é elas que Clarice quer convencer de que não é uma pessoa má e que matou os peixes sem querer. Para isso, vai buscar em suas memórias as histórias dos bichos que teve. São vários causos, contados com crueza, sem metáforas, para mostrar para seus pequenos leitores que ela sempre gostou de animais. Seu diálogo com as crianças é tão verdadeiro que o Antônio respondia a todas as perguntas que faz no texto, criticava suas atitudes e até lamentava pela sorte dos bichos sobre os quais Clarice escreve. A história que mais o tocou foi a de Max e Bruno, dois cães amigos que lutam até a morte por causa de um ser humano. Antônio ficou triste, como Clarice disse que ele ficaria, e não perdoou Bruno, apesar de ela pedir compreensão com o cão. Nesta altura, o Pedro que acorda com a alvorada, já tinha sucumbido ao sono. Eu e o Antônio seguimos, então, adiante para o fim da história, que não guarda mistério algum, a não ser aquele escondido atrás de um belo texto. Mistério que o Antônio decifra com sua alma de leitor-ouvinte, que anda fazendo um esforço sobre-humano para ler as palavras que lhe trazem tantas histórias. 

3 comentários:

Luciana Conti disse...

Transcrevo aqui o comentário deixado pelo Wilson França, amigo querido, no meu facebook.
"Excelente o texto. Tentei postar um comentário lá no blog e não consegui. Acho que errei a senha e ele não aceitou mais. Eis aqui. "Parabéns,Lu. Belo texto.Eu sou fã da Clarice. Na semana passada tentei ler este livro para o Lucas e o Pedro, mas não obtive sucesso. Preferiram o "Diário de um Banana", que já leram até o quarto livro. O Pedro, de 7 anos, lê até cansar para o Lucas, de 3. Depois passa pra mim. Ah, o Pedro pegou no colégio o "Capitão Cueca", e já leu o primeiro. Descobri que são 10 volumes. Depois disso, vou traçar uma estratégia e colocar os da Clarice como prioridade. Eh, isso. Bjs"

Ana Maria Santeiro disse...

Estava com saudades de suas resenhas liteiro-afetivas. Como sempre, adorável!. Beijo

Luciana Conti disse...

Ana, você sempre com um carinho pra mim.<3