Tebas faz parte dos meus sonhos em quase todas as minhas noites. Em sonho, passeio pela casa que foi minha, entro no meu quarto, procuro o que perdi ali há 30 anos e nem sei o que é. Mas não deixo de voltar, procurar meus fantasmas e conversar com meus mortos. Mortos em vida. Mortos pelo abandono. Mortos pelo mudar dos rumos da vida. Mas eles estão lá, como um marco, um porto seguro, uma tarde que não teve fim. Eles fazem parte de uma Luciana que quase ninguém conhece, mas que tem raízes profundas na adulta que sou. Uma Luciana que correu solta pelos campos de pés descalços, que andou em casas de prostitutas e de santas, que chorou de saudades de uma cidade cada vez mais distante e conheceu um mundo em vias de desaparecer. Um mundo onde bichos e gente se misturavam nas ruas de pedra ou de barro, em que era preciso atravessar rios alagados, com a roupa limpa em um saco em cima da cabeça, para sair formosa para os bailes de perto e de longe. Um mundo onde crianças e adolescentes se misturavam em times de vôlei, passeios de bicicleta e banhos de cachoeira. Um mundo em que, nos fins dos anos 70, ainda se lembrava da escravidão e havia clubes de brancos e de negros. Um mundo em que todos se conheciam e meninas andavam de mãos dadas cantando sucessos da MPB. Um mundo de praças, em que se vigiava a vida dos outros pelas frestas das janelas e pequenas novidades eram esperadas ansiosamente. Pequenas novidades, como circos com meninos vendendo pirulitos de açúcar queimado; touradas, não importava se com touros ou vacas; e acampamentos de ciganos. Foi com esse mundo, ainda nas minhas retinas, que li com emoção Ciganos, de Bartolomeu Campos de Queirós, editada pela Global, com belo projeto gráfico de Eduardo Okano sobre ilustrações de Pierre Derlon. A pequena cidade em que o "menino feito de coragem e medo" presencia a chegada de um grupo cigano poderia ser Tebas. E o é nas mulheres com cadeiras na calçada e adultos de pouca conversa com as crianças. No medo que o pai desperta no menino e seu enorme desejo de ser amado por ele. No olhar por sobre as montanhas das Gerais, de onde se pode sonhar com o mar e uma vida que nem se sabe qual é. No viver o tempo de uma maneira que as pessoas da cidade nunca vão entender e é descrita com maestria por Bartô, no trecho em que fala dos ciganos indo embora. "Sem saber se haveria regresso, a saída dos ciganos deixava, nos habitantes da cidade, um vazio impossível de ser preenchido com rezas, novenas, paciência. Era como se a alma ficasse, de repente, desabitada. Contudo, o amor clandestino e suspenso, inaugurado pelos viajantes, era compensado quando os olhos encontravam o terreno vago, ao lado da igreja, aguardando a próxima visita inesperada." Belo livro que mereceu cada prêmio que ganhou.
PS: Para quem quer saber, os prêmios são o Jabuti de Literatura Juvenil, em 1993, o selo Altamente Recomendável da Fundação de Literatura Infanto-Juvenil e a indicação para o Prêmio Bienal Banco Noroeste de Literatura.
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