sexta-feira, 26 de abril de 2013

Tim Maia, Pessoa, Andersen e as tristezas da vida

Mal dormi hoje por conta de uma crise de tosse que tirou o sono do Antônio às quatro da manhã. Ele foi me pedir socorro e implorar para que eu tirasse aquela doença dele, mas nem todo o meu carinho, xarope e spray de própolis foram capazes de acalmar sua tosse. Ficamos insones, ele e eu e, assim que amanheceu, seguimos para nossa rotina. No rádio do carro, ainda bem cedo, ouvi Tim Maia cantar Bom senso, de seu álbum místico, Racional, e fiquei pensando em como muita coisa mudou nestes 47 anos em que estou no mundo. Quem hoje falaria assim, de cara tão limpa - nesta época o Tim estava limpo, que fez muita coisa errada, dormiu na rua e pediu ajuda? Hoje, vivemos tempos em que todos nascem limpos, bem-sucedidos e felizes. Um tempo em que o Tim seria mais outsider do que foi em sua breve vida. Um tempo que, na verdade, apesar de todo o discurso da diversidade, há lugar para cada vez menos pessoas. Entendo por lugar, um lugar qualificado, que garanta as oportunidades e a mobilidade que a modernidade promete a todos e oferece a apenas alguns. O desabafo de Tim me fez pensar em como nós, da classe média, temos criado nossos filhos. Nas estratégias que adotamos para evitar que eles vivam a dor, a vergonha, a tristeza, a dureza, entre tantas agruras, e no resultado desta proteção. Pensei em Fernando Pessoa e seu Poema sujo, em que o poeta português diz nunca ter conhecido quem tivesse levado porrada e que todos os seus amigos têm sido campeões em tudo. Pensei na máxima das redes sociais de que ninguém é tão feito quanto na identidade, tão bonito como no Orkut, tão feliz como no Facebook, tão simpático quanto no Twitter, tão ausente como no Skype, tão ocupado quanto no MSM e tão bom como diz seu currículo. Talvez por falta de coisa melhor para fazer, estava pensando em tudo isso quando abri meu Facebook e me deparei com dois comentários que engrossaram o caldo de minhas reflexões. Um deles estava no perfil de um jornalista da minha idade, que questionava a supervalorização da juventude. O outro, era de uma jornalista já avó, na dúvida se deveria ler os contos de Hans Christian Andersen para seus netos. Nesta hora, tudo se encaixou. Tim Maia, Fernando Pessoa, redes sociais, Andersen e os jovens da classe média de hoje, que formam uma geração poupada das tristezas e durezas da vida e que ocupam cada vez um lugar maior no mundo. Um mundo, que, por outro lado, nega lugar a outros tantos jovens menos privilegiados. Uma geração que chegou ao poder cedo demais, sem antes ter experimentado privações. Os jovens, que hoje estão no poder, são bem nascidos e bem adaptados a um mundo individualista, marcado pelo consumo e pela busca de status. São filhos de uma camada da sociedade que, cada vez mais, tem garantido lugar nos postos de mando, posto que, cada vez menos, jovens pobres têm condições de ascender. Digo ascensão social de verdade, não esta inclusão que tira os pobres da faixa de miséria e os condena a serem trabalhadores sem instrução, em empregos e moradias precárias e uma realidade de consumo de segunda classe, garantida pelo amplo crédito e subsídios do governo. Aquelas histórias de meninos que começam como boys de bancos e décadas depois estão sentados nas cadeiras da diretoria serão cada vez mais raras, em um mercado que supervaloriza a formação profissional, em uma sociedade que não garante nem mesmo ensino básico de qualidade. Não estou dizendo que só o sofrimento construa, mas, com certeza, sem ele não podemos nos tornar humanos. A riqueza dos contos de Andersen, dizem os historiadores e seus críticos, está intimamente ligada à vida pobre de sua família em Odelsa, na Dinamarca. Andersen foi um menino pobre, que soube transformar sua dor em histórias verdadeiras que, há dois séculos, falam da condição humana com tanta clareza que encanta crianças e adultos de vários cantos do mundo. Seus contos são sofridos, assim como sua infância, mas nos permitem saídas. Saídas construídas pela imaginação, acalentada quando criança pelo seu pai, um humilde sapateiro, que lhe ensinou o prazer de se envolver com boas histórias. Saídas simbólicas, que permitem a seus personagens transformar sua condição no mundo. A pequena vendedora de fósforos, talvez a mais triste de todas as suas histórias, é uma menina pobre, que morre de frio e fome sendo ignorada por todas na véspera do Ano Novo. Sua morte, apesar de trágica, a liberta da tirania do pai, que a joga na rua para esmolar, do frio, da fome, da indiferença e a joga no colo da avó que lhe dá acolhida, em sua última alucinação de quase morte. Uma morte que mexe com sentimentos, que em doses homeopáticas, todo ser humano sente. Uma história que pode servir para as crianças elaborarem seus medos e ressentimentos. A tristeza da menina vendedora de fósforos faz parte da vida, por mais que não queiramos aceitar isso. Que bem poderá fazer a nossos filhos, ignorá-la? Saber que meninas como ela existem até hoje, só pode tornar nossos filhos mais humanos e generosos. Lidar com as provações, só pode torná-los mais fortes. As adaptações das obras de Andersen que escondem a carga dramática de seus personagens - como é o caso de A Sereiazinha e seu destino trágico diluído nas tintas coloridas dos estúdios Disney, na minha opinião, subestimam a capacidade das crianças de entender a vida. Isso não as impede de se revoltarem com o final, como foi o caso do meu filho Pedro, que aos 9 para 10 anos, assistiu a uma bela montagem do grupo Pequod, que preserva a história original. Ele saiu revoltado com a morte da menina, como ficaríamos todos se ela fosse real. Mas esta revolta não roubou dele a experiência de acompanhar a luta da menina para ter uma alma, conseguida mesmo que a custa da morte. Assim como as trágicas e muitas vezes violentas histórias da mitologia grega encantam nossas crianças. Claro que não defendo que estas histórias sejam contadas para crianças que mal saíram das fraldas. Mas, a medida que elas forem adquirindo maturidade para ouvir histórias mais longas, o que coincide com um tempo em que descobrem a existência da maior de todas as tristezas, a morte, acho, sim, que podem ser apresentadas ao universo de Andersen. Para nossa surpresa, na maior parte das vezes, as crianças se atêm mais no maravilhoso da história do que na morte dos personagens, como é o caso de O Soldadinho de Chumbo. Infantilizá-las no campo das emoções é um contra-senso, em uma sociedade que se gaba de ter filhos com cada vez mais habilidades precoces. Eles podem usar computadores aos três anos, mas não podem conhecer a morte aos seis. Eles podem aprender uma segunda língua antes mesmo de serem alfabetizados, mas não podem saber da miséria aos seis anos. Os fracassos da Sereiazinha, os obstáculos do Soldadinho de Chumbo e as privações da Pequena Vendedora de Fósforos só podem preparar melhor nossos filhos para as suas próprias dificuldades. Afinal, um dia todo mundo vai virar calçada maltratada, como o Tim já virou.

2 comentários:

  1. Puxa, Luciana, vir aqui ler suas resenhas é sempre um prazer, um aprendizado. Mas, dessa vez, foi também uma bela reflexão.

    Penso muito em tudo isso também, penso muito no tipo de filhos que estamos criando, essa nossa geração que, além de carregar muitos dos vícios da "burguesia" de gerações anteriores, ainda tem um agravante: somos uma geração que não cresceu, que vive numa eterna Terra do Nunca, preocupados que estamos em satisfazer primeiramente nossas necessidades e quereres. Alguns bem legítimos, claro, mas boa parte deles até infantil.

    Acho que somos muito, muito imaturos mesmo. Como ensinar um filho a lidar com a frustração quando nós mesmos não lidamos? Quando nós mesmos "precisamos" comprar tantas coisas, "precisamos" ter esse e aquele carro, "precisamos" desse e daquele gadget? Parece que a vida é um grande parque de diversões. Putz, o prazer é ótimo e deve sempre, sempre, sempre ser buscado. Mas é preciso também encarar de frente os processos, tão ou mais importantes que o prazer que se busca. Não sabemos mais como fazer isso. E, claro, não sabemos ensinar.

    Não sei se você assistia àquele seriado (que passa ainda hoje) "Friends". Tem uma personagem,cuja mãe se suicidou, que conta, num episódio, que a mãe sempre desligava a TV antes dos finais tristes de todos os filmes. Então, ela, a personagem, achava que muitas obras clássicas tinham finais felizes porque a mãe a "poupava" de ver o desenrolar das histórias. Eu sempre pensei, quando vi esse episódio: quem a mãe queria poupar? Phoebe (a personagem) ou ela mesma?

    bjos

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  2. Oi, Natalie, você está certa. Somos nós que não sabemos lidar com as frustrações e, por isso, poupamos nossos filhos. É mesmo duro ver um filho sofrer, mas é ainda pior vê-lo insensível às dores da vida, que causam o sofrimento. O importante é estarmos sempre alertas para evitar estas armadilhas de nosso coração de mãe. rs
    bjs
    Luciana

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