segunda-feira, 4 de maio de 2015
Guernica e a saudade do século XX
Ver Guernica cercada por uma pequena multidão de turistas, como eu, impressionados com o painel em preto e branco que contou ao mundo o espanto de Picasso diante da barbárie que foi o bombardeio da pequena cidade basca, em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola, me fez sentir uma baita saudade do século XX. Tive saudades da intensidade com que os homens, de direita ou esquerda, viveram as ideologias na virada do XIX para o XX, o que fez deste tempo um dos mais tumultuados e profícuos da humanidade. Todos sabemos que não foram tempos fáceis. Guernica não foi a única vítima do século XX. Depois dela ainda morreram judeus nos campos de concentração nazistas, japoneses pela bomba atômica e vietnamitas pela bomba de napalm, só para citar algumas das barbaridades que se viu neste tempo. Anos loucos que passaram rápido, com a velocidade que o progresso da ciência oferecia naqueles primeiros dias. O século XX foi marcado por sonhos e pelo fim deles, mas, sobretudo, por homens que acreditavam no porvir. Uma crença em dias melhores, que, com certeza, fez Picasso impedir a exposição de sua tela na Espanha, enquanto o Regime Franquista governasse seu país natal. A esperança de Picasso de que aquela enorme noite encontrasse o dia, era a de todos os seus contemporâneos de boa vontade. O dia enfim raiou na Espanha. O generalíssimo Franco, líder da ofensiva contra os republicanos, morreu, o poder se democratizou e a tela, conhecida pelos espanhóis como o último exilado, pode viajar, em 1981, de Nova Iorque para Madri. Hoje, está no Museo Reina Sofia junto com os estudos de Picasso para a enorme tela, de 351 x 782 cm. Por tudo isso, é uma emoção chegar no salão em que está exposta, guardada apenas por um cordão de isolamento e dois monitores do museu, pompa suficiente para o Pedro entender tratar-se mesmo de uma obra especial. Tão especial que mereceu um livro ilustrado, da historiadora Heliane Bernard, com ilustrações de Olivier Chapentier, para contar a história de Guernica, a tela e a cidade. Um belo livro editado pela espanhola Kalandraka, que reconta a tragédia da cidade e expressa nas dramáticas ilustrações o sofrimento do povo espanhol e do artista. Um livro ilustrado para jovens e adultos que merecia tradução no Brasil, afinal, Guernica diz respeito a todos nós, como costumavam ser os grandes fatos do século XX. O bombardeio da cidade foi o mais dramático ato de uma guerra que mobilizou gente de todos os cantos para defender a resistência ao fascismo. Uma guerra que emocionou o mundo com o romance "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway. O americano, radicado em Paris, recorreu ao poeta inglês John Donne e ao sofrimento do espanhol para falar de sua imensa identidade com o humano. "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro, em si mesmo; todo homem é uma partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo o mar deixa menor a Europa, como todo um promontório fosse, ou a Herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti." A citação que abre o romance de Hemingway fica ainda mais clara diante de Guernica. Uma clareza que nos faz mais tristes ao desconfiar de que, fora daquela sala, pouca gente lembra-se de Donne, Hemingway e Picasso. Um esquecimento que nos faz calar diante das tragédias do século XXI e nos enche de nostalgia do século XX, apesar de todo o sofrimento que ele impôs ao homem.
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