segunda-feira, 22 de julho de 2019

Sobre ser Kihu e seus voos

Um bando de Kihus
Kihu é uma ave de arribação que, todos os semestres, assim que se iniciam as férias escolares, bate asas para a Serra do Matoso. Ela vai em bandos de 45, com pressa para chegar naquela nova terra. Nova, mas sempre a mesma. Pouca coisa muda por lá. Uma ou outra Kihu se junta ao bando, ansiosa por novos ares. O tempo que as Kihus passam na Serra do Matoso é precioso. Só elas podem sentir o cheiro do mato e das flores que cobrem aquele chão, das árvores que lhes garantem sombra, o frescor da água de nascentes em seus corpos, o calor dos cães ansiosos por acolhimento e o olhar misterioso dos gatos que passam a noite a andar pelo mato. Só elas são capazes de encontrar, com seus bicos nervosos, os grãos que se espalham, como moedas em uma caça ao tesouro, pelos caminhos daqueles campos. Quando a noite chega, elas, apenas elas, ouvem o piar das corujas e o burburinho de seus pares. Só elas enxergam o breve piscar dos vagalumes e o brilho do nascer do sol. O farfalhar de suas asas ameaça a calmaria do ar e coloca em movimento céus e terra. Elas trazem novos tempos, que, como em um círculo, é sempre aquele vivido, intensamente, antes e por outros. Mas o vigor de seus corpos subverte a ordem e renova o que era para ser repetido e, assim, o círculo ganha nova atmosfera. Quando uma Kihu envelhece e já não pode mais voar, acompanha atenta o voo das mais novas na esperança de, pelos olhos delas, ver novamente o que lhe é negado por suas retinas cansadas, com tantas idas e vindas. Àquelas que guardam em si a essência de uma Kihu, é dada a possibilidade de experimentar novamente, dispensado a segurança do chão, a magia do voo de uma Kihu. Um voo em que corpo e penas já não são mais sentidos, permitindo apenas a experiência de estar suspensa e livre, de ser uma Kihu.



quarta-feira, 17 de julho de 2019

A estética da vertigem em "Todo cuidado é pouco"

Compartilho, aqui, com vocês meu artigo A estética da vertigem como estratégia de subversão da ordem: um estudo de "Todo Cuidado é pouco", de Roger Mellopublicado na Revista Palimpsesto, do programa de pós-graduação em Letras da UERJ. Meu objetivo foi analisar o livro ilustrado na perspectiva da vertigem. A hipótese que trabalhei é a de que o autor se utiliza da forma da parlenda para criar uma ciranda em que os personagens se transformam à medida em que a narrativa avança, em versos rimados e ritmados. As ilustrações se comporiam, nessa perspectiva, por imagens fragmentadas e circulares, como a de um caleidoscópio, e a leitura dos versos produziria uma espécie de vertigem que libertaria o leitor do sentido estrito do texto, oferecendo-lhe uma experiência lúdica. A narrativa circular, como uma ciranda, é, segundo minha hipótese, não uma reafirmação da tradição dos jogos falados, mas a utilização deles para criar um ambiente de instabilidade que subverte o papel de cada personagem. Essa análise foi inicialmente apresentada como monografia final do curso Línguas do começo, ministrado pela professora doutora Rosana Kohl Bines, no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, da PUC-Rio (PPGLCC-PUC-Rio). Rosana é também minha orientadora de mestrado, a quem só tenho a agradecer pela generosidade e atenção de sempre.