Acordei tarde, embalada pelo friozinho que chegou na cidade ontem à noite, e fui cuidar dos meus temperinhos na janela. Do outro lado, distante, estava o menino que grita pela janela. Assim que me viu, gritou: "oi!". Eu olhei em sua direção, surpresa (foi a primeira vez que ele se dirigiu a mim de início). Eu, constrangida com a deferência que me soou como homenagem, gritei de volta: "Oi!" Ele respondeu, "tá frio". Eu de cá, lembrei que hoje é sábado e que muita gente ainda devia estar dormindo, e gritei acanhada: "tá frio". Acenei. O menino acenou de volta. Uma mulher ainda jovem, que parecia ser sua mãe, apareceu na janela, como a me dizer que olha pelo filho. Acenou para mim. Eu retribuí o aceno. O menino, gritou de novo -"tá frio", em uma nova tentativa de puxar assunto. Eu de cá, ainda envergonhada, sem conseguir me despir da minha madureza, sepultei a conversa, com um lacônico "sim". Ele não desistiu, e continuou na janela a me olhar, talvez estranhando a mulher que costuma lhe retribuir os gritos guturais. Talvez tenha pensado que eu ainda não sei falar, que só sei gritar e repetir o que ouço, como os bebês. Será que ele tem um irmãozinho que faz isso, o imita em tudo? Não sei, mas sua mirada insistente me fez perceber que não sou assim tão livre, que não sei mais gritar pela janela como antes. Me vi incomodada. Olhei pro lado e vi as janelas dos vizinhos próximas, pensei "hoje é sábado", "ainda é cedo", "tem muita gente dormindo" e me calei. Me calei porque hoje é sábado, pensei, se fosse um dia de semana eu gritaria, conversaria à distância com o menino da janela. Acenei de novo. O menino mais uma vez retribuiu. De cá, pensei em quantas vezes podia acenar de novo, silenciosamente, protegida pelos meus pés de manjericão e alecrim, sem parecer estranha para o menino. Evitando a resposta, deixei a janela, mas não sem antes acenar mais uma vez para o menino.
sábado, 11 de setembro de 2021
domingo, 18 de julho de 2021
O grito do menino para a menina que um dia eu fui
No prédio em frente ao meu, há um menino que com frequência se diverte gritando na janela. A distância que me separa dele me impede de ver seu rosto, mas posso sentir o seu corpo miúdo próximo a uma rede que o protege do abismo. É de lá, do alto, de costas para a rua principal, de onde é impossível avistar alguém, que ele grita. Gritos que não passam de grunhidos, de berros sem nexo, de mensagens ao léu. De cá, o ouço como se me chamasse, como se falasse à minha infância, ao tempo em que eu, como ele, me debruçava na janela da casa dos meus pais para gritar.
Meu grito, como o dele, era sem nexo e sem destinatário, era apenas um
grito para romper o tédio, sentimento incompreensível para as crianças. Eu
gritava mais alto e mais agudo que o menino que escuto hoje. Gritava e ria depois,
como imagino que ele o faça. Gritava e aguardava as reclamações dos meus irmãos
e a reprimenda da minha mãe que me davam a certeza de que meu grito era ouvido.
Ele rompia o tédio, ele movimentava a casa, ele me enchia de energia.
Não sei que efeito ele provoca no menino defronte a mim. Não sei
se tem irmãos, se a mãe dele o recrimina, se o castiga, sei apenas que ele
grita e repete seu grito. Um grito sem nexo, um grito potente, um convite à infância
que recebo aqui, como uma intimação. Vou para a janela e grito em resposta ao
menino. Ele para, ouve, faz uma pausa e novamente grita. Eu retruco com um novo
grito. Ele grita outra vez, modulando a voz para obter novos efeitos. Eu de cá
me esmero para emitir um grito diferente. Ele devolve o grito. Eu grito
mais uma vez, com medo de estar esgotando meu repertório.
O menino não para, seus gritos não acabam. Eu de cá, tentando renovar
meus gritos, me pergunto o que os vizinhos estarão pensando de mim, mas volto a me concentrar em meu interlocutor. O menino sabe de onde vêm os gritos que respondem aos seus.
Não vê meu rosto, como não vejo o dele, mas sei que pode perceber pelo meu
corpo que sou uma adulta, e parece não se inibir com essa constatação. Me
pergunto se minha adultez o confunde. Espero que não. Queria mesmo que meus gritos
sussurrassem em seu ouvido que a infância é possível, mesmo quando ela termina, como fazem os seus nos meus.