segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Uma escola para pais e filhos serem felizes

Hoje, vou falar da escola dos meus filhos. Eles estudam, desde a educação infantil, no Ceat, que se abriga em um cantinho de Santa Teresa, alimentando-se dos ares da Floresta da Tijuca. A escola é um sonho. Instalada em um castelo, forma crianças antenadas com seu tempo e sua gente, solidárias, competentes e felizes. Crianças que podem, no ambiente escolar, viver  integralmente, acionando corpo, mente e  sensibilidade. Crianças com permissão para brincar, para criar, para agir. Crianças-sujeitos são elas no Ceat, que há 50 anos forma cidadãos. Meus filhos e nós, seus pais, somos apenas um pouquinho dessa história, mas todas as vezes que entramos no Ceat nos sentimos inteiros nesse lugar, em que o tempo corre pelos pés dos meninxs que têm o privilégio de crescer naquele pátio, nas curvas do castelo, sob os olhos de tantos professores e funcionários comprometidos com um futuro melhor. Estar no Ceat é, sem dúvida, uma bênção e um privilégio. Nos alenta, nesse mundo de tão pouca empatia, poder contar com uma escola que resiste à banalização da vida e da vontade de saber. Contar com esse corpo, formado por professores e funcionários que promovem a auto-gestão de uma escola sem patrões, para as melhores e necessárias lutas em defesa da educação pública de qualidade. Contar com gestores que criam laços com quem preenche a escola de vida (professores, funcionários, pais, mães e filhxs), e, por isso, estão sempre preocupados em criar políticas de proteção ao emprego e de permanência dos alunos na escola. Em tempos tão bicudos, promovidos pela mais injusta e insensível política econômica que o país já viu, as escolas particulares estão demitindo e perdendo alunos. O Ceat também perdeu alunos, em um drama vivido por todos na escola. As crianças se viram afastadas em seu dia a dia de amigos queridos, os pais que foram, foram tristes, os que ficaram, ficaram também tristes. A vida seguiu, como deveria seguir, mas o que passou não se pode esquecer. Ainda bem. Foi por lembrar, por perceber a falta dos que se foram nas salas de aula é que o Ceat, por meio de seu corpo de professores e funcionários, tomou uma decisão improvável. Congelar os salários de professores e funcionários para congelar também as mensalidades, mantendo os valores desse ano no próximo. Uma decisão que só pode ser tomada sem trauma por uma escola gerida por seus próprios professores e funcionários, em defesa do emprego e da permanência de seus alunxs, em sua maioria, como a própria gestão apontou, filhos de professores, profissionais liberais, artistas, produtores culturais, enfim, de atingidos pela política de terra arrasada do atual desgoverno. Por isso, digo sem medo de errar: eu  o Ceat.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Sobre ser Kihu e seus voos

Um bando de Kihus
Kihu é uma ave de arribação que, todos os semestres, assim que se iniciam as férias escolares, bate asas para a Serra do Matoso. Ela vai em bandos de 45, com pressa para chegar naquela nova terra. Nova, mas sempre a mesma. Pouca coisa muda por lá. Uma ou outra Kihu se junta ao bando, ansiosa por novos ares. O tempo que as Kihus passam na Serra do Matoso é precioso. Só elas podem sentir o cheiro do mato e das flores que cobrem aquele chão, das árvores que lhes garantem sombra, o frescor da água de nascentes em seus corpos, o calor dos cães ansiosos por acolhimento e o olhar misterioso dos gatos que passam a noite a andar pelo mato. Só elas são capazes de encontrar, com seus bicos nervosos, os grãos que se espalham, como moedas em uma caça ao tesouro, pelos caminhos daqueles campos. Quando a noite chega, elas, apenas elas, ouvem o piar das corujas e o burburinho de seus pares. Só elas enxergam o breve piscar dos vagalumes e o brilho do nascer do sol. O farfalhar de suas asas ameaça a calmaria do ar e coloca em movimento céus e terra. Elas trazem novos tempos, que, como em um círculo, é sempre aquele vivido, intensamente, antes e por outros. Mas o vigor de seus corpos subverte a ordem e renova o que era para ser repetido e, assim, o círculo ganha nova atmosfera. Quando uma Kihu envelhece e já não pode mais voar, acompanha atenta o voo das mais novas na esperança de, pelos olhos delas, ver novamente o que lhe é negado por suas retinas cansadas, com tantas idas e vindas. Àquelas que guardam em si a essência de uma Kihu, é dada a possibilidade de experimentar novamente, dispensado a segurança do chão, a magia do voo de uma Kihu. Um voo em que corpo e penas já não são mais sentidos, permitindo apenas a experiência de estar suspensa e livre, de ser uma Kihu.



quarta-feira, 17 de julho de 2019

A estética da vertigem em "Todo cuidado é pouco"

Compartilho, aqui, com vocês meu artigo A estética da vertigem como estratégia de subversão da ordem: um estudo de "Todo Cuidado é pouco", de Roger Mellopublicado na Revista Palimpsesto, do programa de pós-graduação em Letras da UERJ. Meu objetivo foi analisar o livro ilustrado na perspectiva da vertigem. A hipótese que trabalhei é a de que o autor se utiliza da forma da parlenda para criar uma ciranda em que os personagens se transformam à medida em que a narrativa avança, em versos rimados e ritmados. As ilustrações se comporiam, nessa perspectiva, por imagens fragmentadas e circulares, como a de um caleidoscópio, e a leitura dos versos produziria uma espécie de vertigem que libertaria o leitor do sentido estrito do texto, oferecendo-lhe uma experiência lúdica. A narrativa circular, como uma ciranda, é, segundo minha hipótese, não uma reafirmação da tradição dos jogos falados, mas a utilização deles para criar um ambiente de instabilidade que subverte o papel de cada personagem. Essa análise foi inicialmente apresentada como monografia final do curso Línguas do começo, ministrado pela professora doutora Rosana Kohl Bines, no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, da PUC-Rio (PPGLCC-PUC-Rio). Rosana é também minha orientadora de mestrado, a quem só tenho a agradecer pela generosidade e atenção de sempre.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Piedade pouca

Ao sair quarta à noite da PUC, universidade no coração da Zona Sul em que jovens burgueses pagam milhares de reais para estudar, passei por dois meninos ainda mais novos que os meus a vender balas. No fim da calçada, havia um rapaz preto e pobre deitado no chão a pedir dinheiro. Eu, como os outros, olhei para frente, como se em meu caminho não houvesse chão. Segui. Segui incomodada com a pobreza do outro, mas segui para a minha casa. Tomei banho para deixar a rua do lado de fora, jantei com os meus e dormi. Voltei ontem cedo para a PUC e, em meu caminho de ida, lá estava o rapaz, como se o tempo não houvesse passado, no mesmo lugar, com a pouca e rota roupa de antes. Ali, estava ele novamente a meus pés, com as pernas negras e os pés fortes esticados na calçada, como a formar uma barricada. Seus gestos continham a pressa dos que têm fome e o desespero dos que esperam por piedade. Ao ver-me disposta a abrir a bolsa e procurar por um trocado, o rapaz levantou as mãos em prece, como se saudasse um deus que dirigisse a ele sua graça, e, ao ver as moedas, abriu-as para receber tão acanhada piedade. Eram apenas quatro moedas. Quatro moedas que não somavam mais do que um real e cinquenta. Uma piedade tão pouca para gestos tão largos, que, ao dar as costas para ele e seguir em meu caminho, chorei. Apenas chorei. 
#LulaLivre 


PS: Posto a capa do conto A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, por ele provocar em mim a mesma emoção que senti ao ver o rapaz que estava na calçada da PUC aos meus pés. Já falei disso aqui no blog, se quiser, clica aqui e volta lá.