quarta-feira, 1 de abril de 2015

De médico e de monstro todo mundo tem um pouco

A primeira vez que li O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, eu devia ter uns 15 anos. Peguei o livro da Biblioteca de Tebas, um lugarejo no interior de Minas onde nasceu meu avô e eu passei bons dias de meus primeiros anos, e o devorei. Isso faz tanto tempo que não lembrava mais da história da transformação de Dr. Jakell em Mr. Hyde. Lembrava apenas de que havia sido uma história que, naqueles dias da adolescência, havia prendido minha atenção e me levado até o fim da narrativa. O livro que li foi o original, mas meu reencontro com a história de Stevenson me fez conhecer a adaptação da coleção Clássicos Infantis, da Cia das Letrinhas. Ele chegou aqui em casa pelas mãos do Pedro, que o trouxe como tarefa da aula de Português, e  resolvi relê-lo para podermos conversar sobre ele. Além de fazer eu me reencontrar com a história, perdida em um canto inacessível de minha memória, a leitura me fez pensar em como as narrativas nos parecem diferentes, dependendo do momento da vida em que tomamos contato com elas. O médico e o monstro da minha memória era um livro fantástico e impactante, que teve o poder de me fazer trocar meus amigos algumas horas por ele. Agora, em uma nova leitura, pude ver que sua riqueza vai além disso. Stevenson foi capaz de falar de sua época em um conto de terror, inscrevendo, assim, a obra no rol dos clássicos da literatura. Dr. Jekill e Mr. Hyde falam de uma Inglaterra pós-Revolução Industrial marcada pelo abismo provocado pela divisão de classes da sociedade burguesa e do esforço humano de romper fronteiras do conhecimento. Dr. Jekill é uma vítima de si mesmo e de seus desejos, que representavam uma subversão à rígida moral vitoriana de seu tempo. Ao nos mostrar que de médico e de monstro todo mundo tem um pouco, Dr. Jekill subverte não só a moral que ditava o comportamento na época, mas também à ética que determinava os limites do avanço da ciência, que, no século XIX, conquistara corações e mentes. A fé de Dr. Jekill na ciência é semelhante a de Dr. Frankenstein, de Mary Shellei, e leva os dois, por razões distintas, a desafiar a natureza e os limites da sociedade em que vivem. Como Prometeu, o titã grego que rouba do fogo do Olimpo para entregá-lo aos homens, os dois são punidos por sua ousadia. É este pano de fundo que dá grandeza ao conto. Um pano de fundo que não pôde ser percebido pela menina que um dia eu fui e, hoje, pelo meu filho, mas que, como toda grande questão, está latente em cada um de nós. A caprichada edição da Coleção Clássicos Infantis, talvez por saber dessa dificuldade, dá uma mão ao jovem leitor, apresentando a história e o autor no contexto de seu tempo histórico. Com belíssimas ilustrações de Ian Andrew e infográficos, o leitor iniciante vai se inteirando das sutilezas do texto para montar, ele próprio, sua versão de O médico e o monstro. Uma versão que poderá ser mudada, a qualquer momento da vida. Assim são os clássicos, livros que nunca acabam de ser lidos.