segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mulheres e homens escrevendo uma nova história

O relançamento recente do livro As mulheres e os homens, da Equipo Plantel, pela editora catalã Media Vaca e por aqui pela Boitatá, o selo infantil e juvenil da Boitempo, me fez pensar em como, mais do que nunca, é preciso conversar com as crianças, sejam elas meninas ou meninos, sobre as questões de gênero e a luta das mulheres por direitos. O feminismo está de novo em pauta na sociedade, com seu debate reanimado pelas jovens e adolescentes em busca de direitos e na luta contra as abomináveis violações do corpo da mulher, seja pelo abuso sexual ou pela violência física. Mas ele não mexe apenas com a cabeça de meninas e mulheres. Ele balança também meninos e homens, que precisam se adaptar a novos tempos, em que são cobrados a ter uma postura menos machista. Muita coisa boa tem vindo com este renovado debate, mas há também os excessos. Excessos que, sei, são normais no calor da luta, mas que têm feito muitos adolescentes se espantarem com a hostilidade reservada a eles, pelo simples fato de serem meninos. Não há dúvidas de que sua condição de gênero lhes garante um lugar privilegiado nas relações sociais, lugar de quem não precisa avançar sobre os outros para garantir direitos, mas que, agora, está vendo ser necessário recuar para preservar a relação com o sexo oposto. Até aí, tudo bem. O que esses meninos e meninas ainda não conseguem compreender é que a luta das mulheres por direitos tem muitos matizes, a maioria deles, determinados por questões de classe ou culturais. É certo que mulheres pobres e negras, em nossa sociedade herdeira do escravismo, sofrem muito mais com o machismo do que as mulheres brancas das classes médias urbanas. Assim, como é certo também que homens pobres, em sua  maioria, são mais machistas do que seus pares destas mesmas classes médias urbanas. Nestas camadas, o discurso feminista se fez ouvir muito mais cedo, criando gerações que há mais de um século discutem o lugar das mulheres em nossa sociedade. Não que este lugar já esteja definido e garantido. Não. Longe disso. Mas o primeiro passo, que é alertar para o problema, já foi dado. E meninos, como o Pedro, meu filho, já estão sendo criados neste novo contexto. Isso também não quer dizer que eles já tenham vencido todos os vícios de homens criados em uma sociedade machista. Não. Também longe disso. Mas é certo que é injusto tratá-los como inimigos, adversários insensíveis de meninas que bravamente lutam por seus direitos. É preciso antes de tudo trazê-los para este debate, já que as relações sociais se fazem por homens e mulheres, categorias que há muito deixaram de ser homogêneas e estão marcadas por uma multiplicidade dada por opções sexuais, situação de classe, raça, idade e várias outras variáveis. É nesta relação entre homens e mulheres que se dá a luta feminista. É em diálogo com os homens que vamos redefinir nossos papéis e, desta conversa, não há dúvidas, vem emergindo há tempos novas questões para o masculino. Questões que, em nossa sociedade patriarcal, ainda não foram capazes de mudar a postura dos homens no interior das famílias, fazendo-os assumir responsabilidades com os filhos e a casa que antes eram vistas como atribuição das mulheres. Mas para isso é preciso também que a sociedade se prepare para os homens alargarem suas responsabilidades domésticas, concedendo a eles uma licença paternidade decente, aceitando uma eventual falta ao escritório para cuidar de um filho doente, permitindo que percam algumas horas de trabalho para comparecer à reunião de pais na escola, só para falar de algumas responsabilidades assumidas, hoje, quase que integralmente pelas mulheres. Sei que já houve muitos avanços, mas eles ainda estão no âmbito do indivíduo. O que queremos é fazer com que estas mudanças se façam sentir na cultura brasileira, em todos os lares. Sinto em meu filho mais velho uma certa perplexidade com a maneira que é olhado pelas colegas. Com justiça, diz que vive em uma sociedade machista, mas que nem todos os homens são machistas. É verdade, mas é verdade também que quase impossível para nós brasileiros, tanto homens, quanto mulheres, não escorregarmos em nenhum momento e nos flagrarmos tendo uma atitude machista. Por isso, há ainda muito a conversar com meninas e meninos e o livro “As mulheres e os homens” nos dá uma mãozinha para travarmos este diálogo sobre a luta das mulheres por direitos. O título faz parte da coleção “Livros para o amanhã”, que traz temas da cidadania e da política em linguagem acessível para crianças, com ilustrações de Lucí Gutiérrez. Em As mulheres e os homens o feminismo é abordado de forma natural, mostrando para as crianças que as diferenças irreconciliáveis entre o masculino e o feminino são resultado de uma educação sexista, em que meninos são criados, em um amplo universo azul, para mandar e meninas, em um mundinho cor-de-rosa, para obedecer. Romper com essas desigualdades e permitir que mulheres e homens escolham seus caminhos, em uma criação sem preconceitos - como meninas não gostam de matemática e meninos não choram - é a mensagem do livro, que termina afirmando que eles são mesmo diferentes, afinal não são do mesmo sexo, mas desiguais, nunca. A maior qualidade de As mulheres e os homens é apresentar o feminismo sem dogmatismos e de forma lúdica, como deve ser uma narrativa destinada a crianças. Uma ótima leitura para se fazer hoje com meninas e meninos. No mais é se preparar para responder a muitas perguntas. Muitas delas que, tenho certeza, ainda não estamos prontos para responder. Mas é essa a magia da história, com agá maiúsculo: escrevê-la e vivê-la ao mesmo tempo. 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Uma emocionante viagem até o outro

Ter irmão nem sempre é fácil. É preciso antes de tudo muita paciência e amor para enfrentar as zoações e as pequenas maldades cometidas em nome do ciúme e da disputa por espaço. Aqui em casa, os meninos estão crescendo e junto com eles a distância entre os mundos em que vivem. O Pedro, com 14 anos, já é um adolescente e o Antônio, com quase 9, está ficando para trás junto com sua infância. O amor, apesar disto, continua ali, só que agora obscurecido pelas diferenças que começam a surgir entre os dois. A distância, na verdade, neste momento, ainda não é substancial, serve mais para proteger o mais velho dos sentimentos de criança do mais novo, que tanto o fazem lembrar de si próprio. Esse desconforto do Pedro ficou claro outro dia, em que li para o Antônio O louco do meu bairro, da escritora paulista Anna Flora, editado pela Ática. Para falar de amizade e rejeição, a autora nos leva para um tempo em que crianças de uma cidade grande ainda formavam turmas de rua e brincavam com carrinhos de rolimã e estilingues. A história nos é contada por uma menina, que vê suas duas amigas deixarem a cidade e, sozinha, entre os garotos, ser excluída da turma. Ela acaba fazendo amizade com Pedro, um menino esquisito, conhecido como o Guardinha Louco, que a ajuda a enfrentar a rejeição e a arrumar um jeito de ser novamente aceita pela turma. Anna Flora transita no mundo das crianças com tamanha naturalidade que garante a identificação delas com seus personagens mais carismáticos. Foi assim com o Antônio. Quando vi, estava com os olhos rasos d'água e o nariz todo vermelho. Continuei a leitura e, como ele continuou embargado, resolvi perguntar se estava chorando. Foi o meu erro. Na cama ao lado, estava o Pedro, prestando uma disfarçada atenção na história, que logo aproveitou a deixa para implicar com o irmão. A zoação foi tanta que a emoção do Antônio logo se misturou à raiva, aquela de quem foi pilhado em um momento de fragilidade, e a confusão começou. Foram alguns minutos em que os conflitos da menina e do louco com os garotos da turma deram lugar à briga dos meus dois meninos. A coisa só se resolveu depois de eu ameaçar colocar o Pedro para fora do quarto para o Antônio poder ouvir a história, que sei, também estava encantando o mais velho. Um encantamento que não veio de graça. A narrativa de Anna Flora consegue traduzir as emoções da menina e de seu novo amigo sem pieguismos, de forma a envolver o leitor de qualquer idade na história. O conto, editado em 1994, é anterior ao grande debate sobre o bullying, mas estrutura-se em cima da zoação de um grupo de crianças com o Guardinha Louco, que acaba sendo incorporado à turma. A maior qualidade do livro, no entanto, não é falar de um tema que hoje preocupa pais e professores, mas falar dele com a linguagem e o imaginário da infância. As ilustrações de Mia ajudam ainda mais a envolver a criança na história, servindo como mais um elemento narrativo para a criança acompanhar as tentativas da menina e do louco de vencer os preconceitos dos meninos da turma, nas quase 30 páginas do livro. Assim, ouvindo a história e vendo as ilustrações de Mia, o Antônio foi curtindo o livro, se emocionando e me deixando curiosa para saber aonde foi que Anna Flora fisgou meu filho. Ele, que é um menino cheio de amigos, fez uma viagem até o outro que, pelo que pude perceber em seus olhos rasos d'água e nariz vermelho, foi emocionante. A viagem do Pedro, como não podia deixar de ser nesse momento da adolescência, lhe causou um certo mal estar que gerou toda aquela inquietação. Mas é isso mesmo. Só experimentando as emoções é que poderemos um dia saber conviver com elas.