sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Quem é o lobo?

Nada é mais difícil para uma mãe de dois filhos do que encontrar o equilíbrio em meio a uma briga entre irmãos. Quando a gente chega na cena da briga é sempre a mesma coisa. Uma das crianças, senão as duas, está chorando e apontando o dedo para a outra e dizendo: "Foi ele quem começou". O que tento, sempre, é ignorar a exegese da briga e tentar fazer com o que os dois parem de se chutar, socar, puxar os cabelos ou até coisas piores, como cuspir um no outro. "Não quero saber quem começou, vamos parar agora", grito. Ou então, diante do choro intenso do Antônio e da queixa do Pedro de que o irmão pequeno começou a bater nele sem mais nem menos, faço um discurso de que as coisas não se resolvem na porrada. Minhas palavras entram em um ouvido e saem pelo outro. Mas ao fim da confusão, os dois, como quaisquer irmãos, voltam a ser os melhores amigos um do outro. Faz parte, é claro. Mas há sempre um que sai vitimizado dessa história, que todos conhecemos ou vivemos. O Antônio, ao que me parece, se coloca nesta posição. Todas as vezes que leio um livro de um menino sendo atormentado por um monstro ou um lobo, sua maior fixação, o Antônio diz ser a vítima e o Pedro o algoz. Mas decide estes papéis sem nenhuma angústia. Ele se vê cair na boca do monstro/lobo/ Pedro sem resistência ou medo. Assim foi durante a leitura de Olha o Lobo, de Tony Ross, editado pela Companhia das Letrinhas, em que ele decidiu, sem dúvidas, ser o menino e o Pedro, o lobo. Nada melhor do que esta história para representar a real relação dos dois. Inúmeras vezes gritos do Antônio me fazem interromper meu trabalho e levantar-me da cadeira para ir ver o que está acontecendo no quarto deles. Ao chegar lá, invariavelmente, o Antônio está chorando e acusando o Pedro de ter batido nele, o esganado, o sacaneado, etc e tal. Algumas vezes, a coisa está realmente acontecendo e outras tantas os gritos são sem razão. Nessas horas, sou dura com o Antônio e o alerto da desonestidade de acusar o outro sem razão e da possibilidade de um dia eu não acreditar em seus gritos de socorro e não o acudir, como aconteceu com o menino da história de Tony Ross. A minha sorte é que aqui em casa o lobo – seja ele quem for - não come ninguém.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Originalidade e inspiração a cargo de um autor

Uma noite de tempestade... é um daqueles livros que reafirmam nossa crença em boas histórias. Histórias que são tão originais e inspiradoras que, como os contos populares, parecem ter como autor o imaginário coletivo. Mas o encontro de um lobo com uma cabra narrado em Uma noite de tempestade... tem um autor. Yuichi Kimura é o seu nome. Ele é japonês e ganha a vida a compor livros e roteiros de programas de TV para crianças e jovens.
Uma noite na tempestade, editado no Brasil pela Martins Fontes Editora, em 2005, é seu best-seller. Já vendeu mais de um milhão de livros em todo o mundo e, por seu sucesso, ganhou uma versão cinematográfica e outros cinco volumes, em que o escritor dá continuidade à história do encontro do lobo e da cabra. Apenas o primeiro livro foi editado no Brasil. A tradução é da experiente Monica Stahel, que usou como fonte uma edição da obra em língua inglesa.
A nossa versão preserva a força dos diálogos criados por Kimura. A história narra o encontro de um lobo e uma cabra que, apesar de ocuparem diferentes lugares na vida e na cadeia alimentar, encontram muitas semelhanças um no outro. Lobo e cabra com a visão enevuada pela tempestade e o medo não percebem quem são na verdade, protegidos pela ignorância, curtem uma bela amizade.
Kimura já declarou em entrevista ter narrado a história quase que completamente por meio de diálogos por acreditar que, assim, a tarefa de descobrir as diferenças entre o lobo e a cabra ficaria a cargo do leitor. Foi uma boa estratégia, com certeza. Mas isso não diminui a força literária dos pequenos trechos descritivos criados pelo autor. 
A narrativa de Kimura é envolvente como uma tempestade e nos dá a possibilidade de recriar na imaginação os sons e as luzes de um temporal. “O vento uivava e rugia, e a cada lufada a chuva caía com mais força, como se fosse uma saraivada de bolinhas de chumbo”, descreve ele, logo no início da história. Esta sugestão tão clara no texto, com certeza, serviu de inspiração para o ilustrador, Hiroshi Abe, que, a pedido do próprio Kimura, deu traço e cor ao encontro da cabra e do lobo.
A escolha do autor não poderia ser melhor. Hiroshi Abe, que na época era tratador de animais no zoológico, expressa a dramaticidade deste encontro, em desenhos de traço simples, compostos sobre o preto. Na verdade, o que vemos é baseado em uma ilusão, como a amizada da cabra e do lobo. Abe riscou com uma caneta de feltro as ilustrações em um papel branco. Depois o fotografou e revelou o negativo. Sobre o negativo impresso, coloriu com canetas marcadoras as ilustrações,  criando um efeito que sugere que elas estão rompendo a noite de tempestade para serem vistas pelo leitor.
Esta conjugação de texto e ilustração garante uma bela história. Uma história a ser ouvida e vivida pelo leitor, que ao fim do livro descobre – para graça de alguns e desgraça de outros – que Kimura não conta como termina esta noite de tempestade. Quem quiser que pense em um fim para o encontro da cabra e do lobo. Ou então que cruze os dedidos na torcida para que traduzam no Brasil os outros cinco livros da série. 
PS: Este texto foge do padrão dos relatos postados neste blog por ter sido produzido para o curso de pós-graduação em Literatura Infanto-Juventil da UFF. Antes de escrevê-lo, li o livro para o Pedro, meu filho de oito anos, que estava adorando a história. Mas no finalzinho da narrativa, veio a decepção. Como a história não tem um fim? O que aconteceu com a cabra e o lobo? "Ah, não! Essa história é muito chata." Bradou meu filho, revoltado com o fato de o autor não ter resolvido o drama vivido pelos dois adversários ocultos. Ele tem razão em esbravejar, já que o final aberto o incomodou, mas isso não faz com que eu desista de apresentar para ele narrativas que o incomodem. Afinal, a literatura é assim: a dor e a delícia de ser o que é, como diria Caetano.