sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

A foto na cabeceira da minha avó


Tenho muitas lembranças da minha avó materna, que, mesmo morta, ainda faz parte da minha vida. Ela não era uma mulher de fácil leitura. Cresceu e viveu em um pequeno mundo e, nele, se movia obedientemente como se não lhe impusessem limites. Exibia uma beleza discreta, a permitida em seu meio social, e deixava transparecer uma alegria quase envergonhada e alguma tristeza. A maior delas, com certeza, a morte prematura do filho, com 21 anos. Um filho que não conheci e, por isso, nunca chegou a ser meu tio. Dele tenho apenas a lembrança do retrato na mesa de cabeceira da minha avó.

Um retrato de um jovem bonito, sorridente, segurando a rédea de um cavalo de corrida vencedor, como todos esperavam que ele fosse. Um retrato do qual me lembro já esmaecido, desbotado, lavado por uma enchente de Blumenau que quase levou definitivamente de minha avó o filho tão amado e perdido. Naquela foto em sua mesa de cabeceira, aquele rapaz viveu até o último minuto da vida de minha avó. Ela se foi em 1993, na noite em que Madona sacudia o Maracanã. Eu estava lá e, ao chegar em casa, soube de minha avó. Hoje, a tenho em minha estante, em duas poses sorridentes. Uma mulher ainda jovem, bonita, de outro tempo a olhar por mim.

Assim são os retratos para mim. Objetos quase sagrados que mantêm viva a aura de quem se foi, de quem amamos, como se fosse possível dar forma à memória. Perdê-los seria materializar a ameaça sempre viva na cor desbotada do retrato do filho de minha avó. Seria ainda mais. Seria ver morrer mais uma vez aqueles que já nos deixaram. Seria me ver apartada de minha memória, sozinha, sem materialidade para a minha história. É dessa ameaça de separação forçada entre nós e a memória que lembro daqueles dias em que, no Jornal do Brasil, me dediquei ao drama dos moradores do Palace II, o prédio construído pelo então deputado Sergio Naya na Barra da Tijuca, que desabou em um domingo de carnaval de 1998, matando oito pessoas e deixando centenas de desabrigados.

Era madrugada do dia 22 de fevereiro de 1998 e eu estava na Avenida Marquês de Sapucaí cobrindo o carnaval. Não me lembro de a notícia me ter chegado em meio à folia. De manhã, de volta à redação, soube do desabamento. Não havia ainda informação suficiente para sabermos da dimensão da tragédia. Era mais um drama em meio a tantos que cobríamos. Todos os recursos do jornal que não estavam empenhados no carnaval da Sapucaí foram desviados para a cobertura jornalística sobre o Palace II. Eu só cheguei a ela na quinta-feira, depois do anúncio das campeãs.

Eram muitas histórias tristes. As mortes, os desabrigados, o prejuízo da maioria que ainda não havia quitado o financiamento do prédio habitado há apenas dois anos. Tudo concorria para aquela ser uma das maiores tragédias a se abater sobre a classe média carioca. Não me lembro bem qual foi a minha participação na cobertura daqueles primeiros dias, o que me marcou foi a noite que antecedeu à implosão do prédio, ordenada pela prefeitura. O prédio veio abaixo de vez em um domingo, dia 28 de fevereiro, após o desfile das campeãs.

Dessa vez, eu não estava na avenida. Passei a noite, com um farnel e alguns colegas, em frente ao prédio que ruiria assim que o dia amanhecesse. Fui pra rua sabendo que minha pauta podia não dar em nada, que eu podia voltar de mãos vazias para a redação. Meu chefe, o Zé Luiz Alcântara, de quem fui amiga até o fim, me chamou em seu aquário e me pediu que passasse a madrugada em frente ao prédio, para fazer uma matéria caso algum morador tentasse entrar nos escombros, antes da implosão, para resgatar documentos, fotos ou memórias. A tristeza dos moradores com a perda de suas referências materiais era tamanha, que tínhamos medo deles desafiarem a morte em busca de algum resquício da vida que ficara para trás.

Naqueles dias, mulheres não davam plantão de madrugada, em jornais. Os perigos da noite ficavam reservados aos homens. Zé Luiz, amigo querido, me deu a possibilidade de recusar a tarefa, mas eu topei. A vontade de estar lá era maior do que o desconforto e os possíveis riscos de passar a madrugada em uma rua deserta da Barra da Tijuca. Foram horas de vigília. Ao contrário do que temíamos, ninguém se aventurou por lá. Nem na rua, nem nos escombros. Havia só seguranças para impedir a entrada na área impedida e uns poucos repórteres. 

Passei a noite imaginando o que estaria debaixo do amontoado de concreto que víamos de longe. Os móveis de uma avó já falecida, o anel que passou de mãe para filha e para neta, a abotoadura que veio na camisa do avô, aquele quadro do amigo talentoso, o faqueiro de família, os cristais ganhos no casamento, a caderneta de escola, a carta do primeiro namorado, a flor ressecada entre as folhas do diário de adolescente, o primeiro cacho de cabelo do filho já adulto, a roupinha usada no batizado do primogênito, a foto de bebê e da formatura, o livro favorito, a coleção de discos, a carteira de trabalho, o caderno de poesias nunca publicadas. 

Passei a noite imaginando a dor de perder o que nos faz lembrar, pensando na foto do filho de minha avó, em sua cabeceira, na dor que seria para ela perdê-lo novamente.


OBS: Peço desculpas por não ter falado de um livro para crianças, nem dos meus filhos. Quis olhar para trás, falar da memória. Da foto na cabeceira de minha avó. Das perdas de quem viu sua casa ruir na tragédia do Palace II, que completou ontem 20 anos.