sábado, 11 de setembro de 2021

Eu e o menino da janela, outra vez

Acordei tarde, embalada pelo friozinho que chegou na cidade ontem à noite, e fui cuidar dos meus temperinhos na janela. Do outro lado, distante, estava o menino que grita pela janela. Assim que me viu, gritou: "oi!". Eu olhei em sua direção, surpresa (foi a primeira vez que ele se dirigiu a mim de início). Eu, constrangida com a deferência que me soou como homenagem, gritei de volta: "Oi!" Ele respondeu, "tá frio". Eu de cá, lembrei que hoje é sábado e que muita gente ainda devia estar dormindo, e gritei acanhada: "tá frio". Acenei. O menino acenou de volta. Uma mulher ainda jovem, que parecia ser sua mãe, apareceu na janela, como a me dizer que olha pelo filho. Acenou para mim. Eu retribuí o aceno. O menino, gritou de novo -"tá frio", em uma nova tentativa de puxar assunto. Eu de cá, ainda envergonhada, sem conseguir me despir da minha madureza, sepultei a conversa, com um lacônico "sim". Ele não desistiu, e continuou na janela a me olhar, talvez estranhando a mulher que costuma lhe retribuir os gritos guturais. Talvez tenha pensado que eu ainda não sei falar, que só sei gritar e repetir o que ouço, como os bebês. Será que ele tem um irmãozinho que faz isso, o imita em tudo? Não sei, mas sua mirada insistente me fez perceber que não sou assim tão livre, que não sei mais gritar pela janela como antes. Me vi incomodada. Olhei pro lado e vi as janelas dos vizinhos próximas, pensei "hoje é sábado", "ainda é cedo", "tem muita gente dormindo" e me calei. Me calei porque hoje é sábado, pensei, se fosse um dia de semana eu gritaria, conversaria à distância com o menino da janela. Acenei de novo. O menino mais uma vez retribuiu. De cá, pensei em quantas vezes podia acenar de novo, silenciosamente, protegida pelos meus pés de manjericão e alecrim, sem parecer estranha para o menino. Evitando a resposta, deixei a janela, mas não sem antes acenar mais uma vez para o menino. 

domingo, 18 de julho de 2021

O grito do menino para a menina que um dia eu fui

No prédio em frente ao meu, há um menino que com frequência se diverte gritando na janela. A distância que me separa dele me impede de ver seu rosto, mas posso sentir o seu corpo miúdo próximo a uma rede que o protege do abismo. É de lá, do alto, de costas para a rua principal, de onde é impossível avistar alguém, que ele grita. Gritos que não passam de grunhidos, de berros sem nexo, de mensagens ao léu. De cá, o ouço como se me chamasse, como se falasse à minha infância, ao tempo em que eu, como ele, me debruçava na janela da casa dos meus pais para gritar.

Meu grito, como o dele, era sem nexo e sem destinatário, era apenas um grito para romper o tédio, sentimento incompreensível para as crianças. Eu gritava mais alto e mais agudo que o menino que escuto hoje. Gritava e ria depois, como imagino que ele o faça. Gritava e aguardava as reclamações dos meus irmãos e a reprimenda da minha mãe que me davam a certeza de que meu grito era ouvido. Ele rompia o tédio, ele movimentava a casa, ele me enchia de energia.

Não sei que efeito ele provoca no menino defronte a mim. Não sei se tem irmãos, se a mãe dele o recrimina, se o castiga, sei apenas que ele grita e repete seu grito. Um grito sem nexo, um grito potente, um convite à infância que recebo aqui, como uma intimação. Vou para a janela e grito em resposta ao menino. Ele para, ouve, faz uma pausa e novamente grita. Eu retruco com um novo grito. Ele grita outra vez, modulando a voz para obter novos efeitos. Eu de cá me esmero para emitir um grito diferente. Ele devolve o grito. Eu grito mais uma vez, com medo de estar esgotando meu repertório.

O menino não para, seus gritos não acabam. Eu de cá, tentando renovar meus gritos, me pergunto o que os vizinhos estarão pensando de mim, mas volto a me concentrar em meu interlocutor. O menino sabe de onde vêm os gritos que respondem aos seus. Não vê meu rosto, como não vejo o dele, mas sei que pode perceber pelo meu corpo que sou uma adulta, e parece não se inibir com essa constatação. Me pergunto se minha adultez o confunde. Espero que não. Queria mesmo que meus gritos sussurrassem em seu ouvido que a infância é possível, mesmo quando ela termina, como fazem os seus nos meus.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Uma capela para Maria Preta

Essa capela foi erguida em Tebas, um distrito de Leopoldina, em Minas Gerais, pelo meu avô Jacy, a pedido de um preto velho que o protegia. Pai Inácio, como o chamávamos, baixava em meu tio avó, um homem branco, filho de uma família rica de Campos dos Goytacazes que faliu, durante uma enchente que melou um grande depósito de açúcar, seu negócio. Os encontros com Pai Inácio eram compartilhados por todos da família, velhos, adultos e crianças. Ficávamos em volta do velho, com seu cachimbo no canto da boca, a ouvir a fala do povo tão distante da casa apalacetada em um bairro nobre do Rio, em que moravam meus avós, esse tio e a mulher. Eram noites de muita esperança na vida que até hoje, em minha memória, me enchem de afeto. Meu avô foi o primeiro dos quatro anciões da família a morrer. Morreu cedo, aos 73 anos, de um infarto fulminante, deixando seu lugar em minha vida para ser ocupado por esse tio-avô. Salvador, era o nome dele. Só lembro dele velho, com o mesmo cachimbo do Pai Inácio na boca, um roupão de toalha cinza claro e uma sandália franciscana a se arrastar pela casa. Era um homem assertivo, autoritário até, com um travo amargo que vinha de dias ruins, quando o pai falido se matou e deixou a mulher com uma penca de filhos, mas sabia também ser doce, divertido e surpreendente. Até hoje me pergunto como ele, com sua origem, recebia um santo de preto. Um santo que pedia pelos pretos, como foi a tarefa de construir essa capela que legou a meu avô. A família era católica, as duas mulheres, irmãs, piedosas italianas nascidas no Brasil, que rezavam para todos os santos. A capela era uma homenagem da família a Maria Marta, uma mulher escravizada que ao adoecer foi largada pelo cruel senhor no meio do pasto. Morreu lentamente, sofrendo a dor da doença e do abandono. Morreu como mártir, e, assim, foi tratada pelo povo da terra que começou a pedir a ela pelos seus, deixando velas e votos no local de sua morte. O prestígio de Maria Marta ou Maria Preta crescia a cada graça recebida, até que um dia, a pedido de Pai Inácio, meu avô começou a ergueu uma capela em seu nome, no lugar da velha cruz de madeira construída por algum devoto. A preta que morreu no meio do pasto virou santa na cabeça do povo, mas não foi aceita pela Igreja local, cujo padre se negou a benzer o local. Lembro bem da confusão que isso causou em minha família, no dia da inauguração da capela, nos idos dos anos 1970. Meu avô já havia morrido e todos estavam reunidos, tensos, querendo mandar um enviado para Leopoldina ter um duro tête-à-tête com o padre. Meu pai distribuiu tranquilizante para todos e a capela foi inaugurada sem as pompas da Igreja. Anos depois, meu tio, de nome Salvador, como o tio, terminou a capela e entregou sua administração para a Igreja. A capela não foi a única homenagem aos pretos que Pai Inácio encomendou ao meu avô. Ele pediu também, décadas antes de eu nascer, que a família promovesse uma festa no dia 13 de maio para os ex-escravizados e seus descendentes. Uma festa que era aberta na manhã do dia 13 por uma banda de música, continuava com sanfoneiros e era regada a muita cachaça, pão e mortadela. O forró era para todos, durava dois dias e atraía muitos pretos da região. Minha mãe, ainda namorada do meu pai, viu algumas dessas festas e conta da alegria e das bebedeiras homéricas dos convivas, alguns deles ex-escravizados. Era uma festa de brancos para pretos - coisas desse Brasil - que lamento não ter conhecido. Imagino uma festa animada por um grupo de caxambu, o ritmo afro-brasileiro que nasceu nos terreiros dos escravizados, em um pátio de terra, com muitas bandeirinhas, fogueira, latões de leite cheios de cachaça e bancas de comida abastecidas pelas mulheres da família. Imagino a alegria da música, da dança e dos cantos, misturada à dor ainda viva da escravidão. Um mundo que se perdeu com o tempo, a migração para a cidade grande e a chegada das novas gerações. Saudades de meus avós e do Pai Inácio, de quem sempre lembro com o carinho e o amor que eu tinha pelo vô Salvador.

PS: A foto eu peguei no perfil da Rozane Reis, no Facebook, que mantém uma página sobre Tebas.