quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O resultado de um olhar atento para os próprios pés

O oculto

Tão rasteiro, sempre perto do chão.
Formato estranho, pranchado,
sem protagonismo, comandado,
perdido, sem direção.

Uma borda cortada em cinco,
com as pontas duras, e a outra firme: raiz
fincada em um círculo que nunca se fecha. 

Sustenta tudo sem reconhecimento,
aguenta todo o peso quieto, despercebido,
desapercebido de adornamento.

Nem quente, nem frio, sempre morno.
Nem belo, nem feio, sempre torto.

É aquele que ninguém revela, que se esconde
em sapatos comprometidos com a graça,
para evitar a desgraça do sol e da chuva. Oculta-se.

Nada mais estranho do que uma mão ao rés do chão.
No masculino é áspero, quebradiço.
No feminino, unhas vermelhas
a bulir com a fuligem das ruas...

Assim, são os pés, que nos sustentam e nos guiam.
Mal-acabados, malditos, malvistos, fedidos, invertidos. 

Esse poeminha-descrição foi o resultado da provocação feita pela Cláudia Chigres, uma das professoras da pós de Literatura, Artes e Pensamento Contemporâneo, da PUC-Rio, para que descrevêssemos uma coisa, qualquer que fosse. O pé foi o escolhido, por estar ali, sobre a cadeira da frente, bem em frente a meu nariz. Sempre ali, despudorado em uma sandália aberta, pedindo atenção. Um exercício que me fez olhar as coisas com outros olhos. 
Experimenta você também. 

Em tempo: essa foto dos meus próprios pés, relaxando em um rio de águas 
límpidas e geladas, fui eu mesma que tirei. Uma delícia. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Sobre habitar o tempo, o nosso e de nosso tempo

Tebas, segundo meus filhos, é um lugar que não existe. Mas Tebas existe, sim. Lá escondidinha em um canto de Minas Gerais e, mais ainda, vivíssima, em minha memória. É um lugarejo tradicional, com a praça marcando seu centro, poucas centenas de casas, muitas vendas, uma padaria, uma igreja no alto do morro, com o cemitério se escondendo ao fundo, um campo de futebol, uma escola, uma biblioteca, um precário posto de saúde e uma cadeia pública. Assim é a Tebas que não vejo há quase 20 anos. O lugar onde aprendi a entender o tempo. Um tempo lento, modorrento, prenhe de nada. Por lá, não há pressa, não há surpresas a serem perseguidas e, tampouco, grandes emoções a serem vividas. O tempo na roça é manso, não nos convida para a luta, não quer nos vencer ou ser vencido. Ele corre. Apenas corre junto com os ventos, as águas, os bichos, os moleques atrás dos outros. O tempo na roça é uma experiência, como é o bater de nosso coração, a chuva que se aproxima, as vozes que rompem o silêncio, o crepitar da lenha no fogão. A noite não engole o tempo e tampouco o dia o pare. Ele escorre do claro para o escuro, do escuro para o claro, nos impedindo de fazer contas e de fracionar o dia. Ele passa lento, junto ao suor dos homens que tratam a terra, às conversas de mulheres em roda que amarram o fumo ou ardem ao lado de tachos de doce, ao embalo dos velhos em cadeiras de balanço, a crianças que correm pelos campos, catando matinhos, pedras e tocos. O tempo na roça é assim, quando a gente para, ele para junto para nos permitir descalçar os pés, uni-los ao chão, deixá-los sentir o frio da pedra, a umidade do orvalho, o calor do sol. Somente nossos pés podem fazer o tempo voltar a andar. Em tudo este tempo é diferente do que vivemos na cidade. O nosso tempo - ou será de outro, apenas emprestado a nós - é, assim, apressado, nervoso, cheio de vazio. Um vazio que, ao contrário do nada lá da roça, que se deixa ocupar pelo ar, nos angustia e pede preenchimento. E é na pressa de preenchê-lo que vamos perdendo a intimidade com o tempo. Aqui, em casa, os meninos, em sua correria para saciá-lo, vão a cada dia que passa tendo mais dificuldade em acreditar que Tebas possa de fato existir. De cá, me espanto em vê-los passar suas horas vagas operando dispositivos eletrônicos para matar o tempo com joguinhos e viagens virtuais. Me culpo por não poder oferecer a eles uma realidade que os faça experimentar o tempo, sem a pretensão de vencê-lo, assim de mansinho, como fazem Lia e Nico, personagens de Lúcia Hiratsuka. Eles vivem no campo e brincam como as crianças de lá, com a terra, plantas e bichos. A natureza preenche o universo dos dois irmãos e animam suas aventuras, que, se julgadas pelo padrão do audiovisual contemporâneo, são bastante prosaicas. Mas é justo a simplicidade e a capacidade de cada um em ver sentido em sua própria existência que fazem de Antes da chuva, Corrida dos caracóis A venda, todos editados pela Global, livros preciosos, que podem nos ajudar a mostrar para as crianças pequenas a riqueza de viver a experiência do tempo, sem pressa, sem expectativas, de boa com a própria vida. Lúcia, assim como João Cabral de Melo Neto, no poema Habitar o tempo (que reproduzo abaixo), nos fala do desafio de nos apaziguarmos com o tempo. Ela com a delicadeza de suas aquarelas o frescor da infância, e ele com a força de seus versos ásperos, difíceis, que nos convidam a decifrar os mistérios do tempo, como se estivéssemos diante de uma esfinge. Habitar seu próprio tempo, sem se afastar do tempo alheio é o desafio maior que vivo na maternidade. Deixar meus filhos serem contemporâneos de si mesmos, sem que, para isso, sejam tragados por um tempo hostil, que os alienará de sua própria existência. Um desafio tão enorme, que só me resta pedir a Cronos que tenha piedade de nós.

Habitar o tempo
Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.

João Cabral de Melo Neto