quinta-feira, 23 de maio de 2013

Trocando de lugar com o filho

Cheguei em casa ontem à noite super cansada e nada a fim de ler para as crianças. Quando dei esta notícia, esperando o choro convulso do Antônio, tive uma surpresa. "Mãe, o meu dever de casa de hoje é ler para a família". "Oba!", pensei duas vezes. A primeira de preguiça e alívio de não ter que ler. A segunda, por um motivo mais nobre, o amor de mãe orgulhosa do filho, que está aprendendo a ler. Troquei de roupa, escovei os dentes e fui para minha cama para o Antônio ler para mim. O livro - Você troca, da Eva Furnari - já foi lido aqui em casa mil vezes. Por mim, pelo Pedro, mas nunca pelo Antônio. Ontem, era a vez do nosso caçula, que orgulhosamente iniciou a leitura. E foi a minha vez de curtir as perguntas da Eva e decidir por minhas escolhas. Amei mais uma vez este livro, que já foi comentado aqui mais de uma vez e merece todos os aplausos, e amei mais ainda a leitura do meu menino. Ainda claudicante, muito baseada na memória de quem já leu ou ouvir a história inúmeras vezes, mas, acima de tudo, brava. Admiro a coragem das crianças que, sem medo de errar, se expõem a tudo e a todos os julgamentos. Não sei se nós adultos teríamos esta coragem, haja visto o constrangimento comum de quem tenta se comunicar em uma língua estrangeira. Mas as crianças enfrentam esse desafio com a maior alegria e nós, do lado de quem já automatizou a leitura, rimos baixinho e com ternura de todos esses erros. Erros que não nos deixam esquecer que a vida é uma eterna luta para conquistar o novo. Novo para meu filho, velho para mim. Mas, com certeza, a emoção que isso me causou é nova e tem cheirinho de bumbum de bebê. Aninhada ao lado do meu filho, não pude deixar de pensar em dar vivas às trocas de lugar, que nos permitem, mesmo que por uma noite, ouvir uma história de quem sempre está atendo às nossas.
PS: Posto aqui meu agradecimento à Karina, à Beth e à Júlia, que estão ajudando o Antônio nesta aventura, e a foto da capa da nova edição do livro. Para quem quiser conhecer os outros comentários sobre o livro, basta clicar aqui ou aqui.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

De vilão a herói, o Curupira Pirapora

Alguns livros tem capas tão boas que é impossível ignorá-los nas livrarias. Assim é com Curupira Pirabora, o primeiro livro de Tatiana Salem Levy para crianças. Em uma primeira mirada, vemos logo o curupira, que, na versão de Tatiana, ganhou pelos verdes, cabelos vermelhos e olhos amarelos, escondido em uma densa floresta. É de lá que vem o curupira, ser mítico das florestas brasileiras, que usa de ardis para se vingar de caçadores que importunam os animais. Ele sempre foi  um terror para o homem branco, inseguro em suas incursões pela floresta, e por isso, estava inscrito no rol de quem flertava com o mal, como o Saci-Pererê. Mas, hoje, com a nova consciência ecológica, o curupira passou a ser visto como herói por proteger a fauna da floresta. E é como herói, mesmo que com pouco caráter, que Tatiana nos apresenta o seu curupira, filho de Pira com Pora e, por isso, Pirapora. Apesar de brasileiríssima, a história acabou sendo editada em Lisboa, cidade em que Tatiana nasceu, durante o exílio de seus pais brasileiros, e viveu poucos meses. Pois foi lá, com o selo da editora Tinta da China, que o Pirapora de Tatiana ganhou vida nas cores de Vera Tavares. O encontro luso-brasileiro, mais uma vez, produziu bons frutos. A ilustradora lisboeta  nunca tinha ouvido falar no ser que anda com os pés para trás, mas, como não podia deixar de ser, encantou-se com seu aspecto mágico. O resultado foi um belo trabalho de ilustração, super colorido como a fauna e flora da floresta, que lembra folhetos de cordel, e valoriza e muito a história do encontro do Pirapora com a mameluca Juliana. A história do curupira de Tatiana é encantadora. Nela, a floresta é apenas o cenário. O principal mesmo é a amizade de Pirapora com Janaína, que, neste encontro improvável, transforma os dois personagens e ensina a Pirapora uma nova e lusa emoção - a saudade. Uma história que encantou a todos aqui em casa e entrou para nossa coleção de folclore. Uma história que deu a Tatiana, jovem e já consagrada autora, o prêmio de escritora revelação, promovido pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, pela sua estreia na prosa para crianças. Confesso que gostei e, junto com o Pedro e o Antônio, torci pelo Curupira Pirapora. Que o livro possa apresentar nosso herói das matas aos quatro cantos do mundo! 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Uma conversa tête-à-tête com Clarice


A resistência do Antônio em aceitar novas histórias para seu repertório, já citada aqui algumas vezes, está sendo quebrada pelas visitas semanais de sua turma à biblioteca da escola. Até o ano passado, na educação infantil, ele frequentava uma aconchegante sala de leitura, em que livros dividem espaço com bonecos. Agora, no fundamental, sua turma frequenta uma biblioteca em uma torre, com estantes repletas de livros que cobrem as paredes da sala até o teto. Das janelas, vê-se uma bela vista. Mas o Antônio, ainda baixinho, só tem olhos para os livros. São tantos e com tantas histórias que ele faz planos de trazê-los para casa. Toda semana vem com um livro novo para lermos juntos. A leitura é sempre um prazer, que nas últimas semanas ganhou mais uma alegria, com a aventura da decodificação das primeiras letras. Uma graça sua leitura. Ela vem esbarrando em dois erres, dois esses, cês, agás, cedilhas e outras trapaças do nosso português, mas não desiste de tentar. O dia todo lê o que lhe passa pela frente e nos chama para comunicar sua mais nova conquista. Deitado na cama, ouvindo histórias, a vontade de ler cresce, mas vida de iniciante não é fácil. A letra cursiva, a opção editorial da maior parte dos livros, acrescenta um novo desafio às crianças em fase de alfabetização, que ainda estão lidando com a letra de forma, ou bastão. Mas o Antônio não desiste nunca e consegue ler algumas poucas palavras, em meio a leituras incompreensíveis. Assim foi com A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, editado pela Rocco Jovens Leitores, e ilustrado por Flor Opazo, que tiramos da nossa estante mesmo. Antônio adiantou-se para ler ele mesmo e, com a maior segurança, saiu falando uma série de fonemas desconexos. Em meio a uma língua estranha, emplacou algumas palavras  em português. Satisfeito com sua performance, entregou-me o livro e passou a acompanhar com interesse minha leitura. O Pedro, que já conhecia a história, juntou-se a nós para ouvi-la mais uma vez. Deitada ao lado do Antônio, comecei a ler: "A mulher que matou os peixes, infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer". Logo nas primeiras frases do conto, Clarice mostra que vai travar um diálogo franco com seus leitores. As crianças são as suas interlocutoras e é elas que Clarice quer convencer de que não é uma pessoa má e que matou os peixes sem querer. Para isso, vai buscar em suas memórias as histórias dos bichos que teve. São vários causos, contados com crueza, sem metáforas, para mostrar para seus pequenos leitores que ela sempre gostou de animais. Seu diálogo com as crianças é tão verdadeiro que o Antônio respondia a todas as perguntas que faz no texto, criticava suas atitudes e até lamentava pela sorte dos bichos sobre os quais Clarice escreve. A história que mais o tocou foi a de Max e Bruno, dois cães amigos que lutam até a morte por causa de um ser humano. Antônio ficou triste, como Clarice disse que ele ficaria, e não perdoou Bruno, apesar de ela pedir compreensão com o cão. Nesta altura, o Pedro que acorda com a alvorada, já tinha sucumbido ao sono. Eu e o Antônio seguimos, então, adiante para o fim da história, que não guarda mistério algum, a não ser aquele escondido atrás de um belo texto. Mistério que o Antônio decifra com sua alma de leitor-ouvinte, que anda fazendo um esforço sobre-humano para ler as palavras que lhe trazem tantas histórias. 

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Monstros malvados, noites insones e histórias verdadeiras

O assunto não é novo. Já falei aqui que sofro há anos com invasões bárbaras, na calada da noite, à minha cama. Primeiro era o Pedro, que chegava e,sem pedir, se aboletava entre mim e o Cadoca para fugir do escuro ou de sonhos ruins. Depois chegou a vez do Antônio, que chega pelo lado da cama, de mansinho, pedindo socorro para espantar seus medos. Sei que eu não sou a única mãe que passa por isso, mas, tenho certeza, que saber disso não me alivia a alma: cansada, insone e atormentada por monstros e bruxas que aparecem no quarto vizinho e eu nem os vejo. Por isso, entendo o mal humor dos pais de André, o herói amedrontado do livro Uma cama para três, de Yolanda Reyes, da Edições SM, belissimamente ilustrado por Ivar da Coll. O menino, como todos, resiste em dormir e faz  súbitas aparições no meio da noite. Nós pais sabemos o mal-estar do outro, mas sabemos também o nosso, no dia seguinte, em que palitinhos de fósforo não serão capazes de manter nossos olhos abertos. Mas vá lá, os monstros que assustam as crianças não têm piedade de nós. Yolanda Reyes sabe bem disso. Sabe também contar esta história sem paternalismos, expondo a dor de cada um e, digamos assim, a insensibilidade dos monstros. Não me interessa livros para espantar os medos das crianças, me interessa histórias que falem deles com verdade. Monstros, bruxas e fantasmas não assustam ninguém quando a luz está acessa e, a hora da leitura com os pais na cabeceira da cama, é um belo momento para as crianças encará-los com os olhos bem abertos. Assim fez o Antônio. Ele acompanhou a longa história calado e ao fim dela, assim ficou. Seus olhos de criança não se enganam com soluções fáceis e palavras encorajadoras. São olhos que estão dispostos a olhar para dentro, se alguém lhes convencer que este é o melhor caminho. Caminho que só é possível trilhar com verdade. E quem tem medo, não acredita em qualquer história. Muito menos naquelas que teimam em dizer que monstros não existem. Por isso, às vésperas do Dia das Mães, peço apenas um presente. Uma noite bem dormida.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Uma aventura em versos de cordel

O cordel sempre me encantou com seu ritmo, suas rimas e o caráter maravilhoso de seus relatos. São histórias que nos pegam pelo pé e nos fazem ficar quietinhos ouvindo e ouvindo, até chegar seu final. Um gênero que tem tudo a ver com crianças, como se fosse o similar nacional dos contos de fadas europeus, e que, aos poucos, está invadindo as estantes das seções infantis de nossas livrarias. O recém-chegado No Reino do Vai não Vem, uma viagem ao reino do cordel, de Fábio Sombra, editado pela Scipione, é um belo exemplo da riqueza do cordel e do encantamento que ele pode causar em crianças e em adultos. Fábio Sombra é ele mesmo o herói da história, que tem como desafio recuperar sua rabeca Veridiana, levada por Pedro Malazartes para o Reino do Vai não Vem, onde moram os personagens da literatura de cordel. Lá, Fábio Sombra tem que cumprir sete provas para recuperar sua Viridiana, que lhe dá inspiração para escrever. As aventuras do cordelista envolvem tanto o leitor que, quando a gente vê, já leu mais de 40 páginas e está no fim da história. O cordel encantou o Pedro, que ouviu com a maior atenção a leitura de cada uma das provação de Fábio Sombra em busca de sua amada Viridiana. Ouviu e viu as belíssimas ilustrações de Flavio Morais, que, sem trair o traço comum das xilogravuras dos folhetos de cordel, dá vida em cores a cada um dos personagens ou dos cenários descritos na história. Seu interesse era tanto, que me implorou para não interromper a leitura e ir até o fim naquela mesma noite. Assim fiz, deixando-o feliz para dormir. "Mãe, a história é muito legal", disse-me, coberto de razões e de seu edredom quentinho. Razões encontradas nas boas histórias populares. Muita ação, situações fantásticas e esperteza para vencer os desafios e os fortes. Para arrematar, uma linguagem poética que nos convida a brincar com a língua. E para melhorar, ao fim, Fábio Sombra nos dá um pequeno painel do mundo do cordel, com um glossário com os personagens citados na história. Uma pena que o Antônio ainda não está pronto para esta experiência. Mas o livro vai ficar guardadinho, esperando a sua vez para dar novamente vida aos personagens do cordel e à aventura de Fábio Sombra. Enquanto isso: "Fecha o pano o menestrel/ silencia o seu cantar./ O final foi fascinante/ mas preciso confessar:/ bem cansado de aventuras,/reis, princesas e criaturas./ afinal vou descansar..."

terça-feira, 7 de maio de 2013

Misturando experiências e criando o novo

A dica foi da Karina, uma das professoras do Antônio, e o livro é realmente um barato. Misturichos, de Beatriz Carvalho e Renata Bueno, é, segundo as próprias autoras, o resultado de um reencontro de amigas, que curtiram brincar de desenhar e misturar bichos. O resultado foi uma série de desenhos e textos super criativos e bem humorados, que divertem e, por que não dizer, incentivam nossos pequenos a arriscar suas misturas. O Antônio, em sala de aula, juntou-se ao Vinícius e à Lis e os três - mistura de cá, mistura de lá - fizeram nascer o Lecochorro, uma mistura de leão, cobra e cachorro. Eu e o Pedro, antes mesmo de ler o texto produzido pela trinca para explicar tamanha aberração, chegamos à conclusão de que um Lecochorro é feroz como um leão, venenoso como uma cobra e fofinho como um cachorro. Será que pode? Tenho certeza de que Beatriz e Renata iam aprovar uma mistura dessas. A mistura delas usou cola, tinta e papel picado para dar cara aos misturichos. O Lecochorro do meu filho e amigos foi parido com sucata e tinta e fez a alegria das famílias de seus criadores. Um sucesso! Mas sucesso maior ainda é encontrar, em meio a tantos lançamentos, um que nos inspire a criar, ou melhor, a misturar experiências para parir o novo. Que meu Antônio possa criar outros lecochorros pela vida.