sexta-feira, 28 de maio de 2021

Uma capela para Maria Preta

Essa capela foi erguida em Tebas, um distrito de Leopoldina, em Minas Gerais, pelo meu avô Jacy, a pedido de um preto velho que o protegia. Pai Inácio, como o chamávamos, baixava em meu tio avó, um homem branco, filho de uma família rica de Campos dos Goytacazes que faliu, durante uma enchente que melou um grande depósito de açúcar, seu negócio. Os encontros com Pai Inácio eram compartilhados por todos da família, velhos, adultos e crianças. Ficávamos em volta do velho, com seu cachimbo no canto da boca, a ouvir a fala do povo tão distante da casa apalacetada em um bairro nobre do Rio, em que moravam meus avós, esse tio e a mulher. Eram noites de muita esperança na vida que até hoje, em minha memória, me enchem de afeto. Meu avô foi o primeiro dos quatro anciões da família a morrer. Morreu cedo, aos 73 anos, de um infarto fulminante, deixando seu lugar em minha vida para ser ocupado por esse tio-avô. Salvador, era o nome dele. Só lembro dele velho, com o mesmo cachimbo do Pai Inácio na boca, um roupão de toalha cinza claro e uma sandália franciscana a se arrastar pela casa. Era um homem assertivo, autoritário até, com um travo amargo que vinha de dias ruins, quando o pai falido se matou e deixou a mulher com uma penca de filhos, mas sabia também ser doce, divertido e surpreendente. Até hoje me pergunto como ele, com sua origem, recebia um santo de preto. Um santo que pedia pelos pretos, como foi a tarefa de construir essa capela que legou a meu avô. A família era católica, as duas mulheres, irmãs, piedosas italianas nascidas no Brasil, que rezavam para todos os santos. A capela era uma homenagem da família a Maria Marta, uma mulher escravizada que ao adoecer foi largada pelo cruel senhor no meio do pasto. Morreu lentamente, sofrendo a dor da doença e do abandono. Morreu como mártir, e, assim, foi tratada pelo povo da terra que começou a pedir a ela pelos seus, deixando velas e votos no local de sua morte. O prestígio de Maria Marta ou Maria Preta crescia a cada graça recebida, até que um dia, a pedido de Pai Inácio, meu avô começou a ergueu uma capela em seu nome, no lugar da velha cruz de madeira construída por algum devoto. A preta que morreu no meio do pasto virou santa na cabeça do povo, mas não foi aceita pela Igreja local, cujo padre se negou a benzer o local. Lembro bem da confusão que isso causou em minha família, no dia da inauguração da capela, nos idos dos anos 1970. Meu avô já havia morrido e todos estavam reunidos, tensos, querendo mandar um enviado para Leopoldina ter um duro tête-à-tête com o padre. Meu pai distribuiu tranquilizante para todos e a capela foi inaugurada sem as pompas da Igreja. Anos depois, meu tio, de nome Salvador, como o tio, terminou a capela e entregou sua administração para a Igreja. A capela não foi a única homenagem aos pretos que Pai Inácio encomendou ao meu avô. Ele pediu também, décadas antes de eu nascer, que a família promovesse uma festa no dia 13 de maio para os ex-escravizados e seus descendentes. Uma festa que era aberta na manhã do dia 13 por uma banda de música, continuava com sanfoneiros e era regada a muita cachaça, pão e mortadela. O forró era para todos, durava dois dias e atraía muitos pretos da região. Minha mãe, ainda namorada do meu pai, viu algumas dessas festas e conta da alegria e das bebedeiras homéricas dos convivas, alguns deles ex-escravizados. Era uma festa de brancos para pretos - coisas desse Brasil - que lamento não ter conhecido. Imagino uma festa animada por um grupo de caxambu, o ritmo afro-brasileiro que nasceu nos terreiros dos escravizados, em um pátio de terra, com muitas bandeirinhas, fogueira, latões de leite cheios de cachaça e bancas de comida abastecidas pelas mulheres da família. Imagino a alegria da música, da dança e dos cantos, misturada à dor ainda viva da escravidão. Um mundo que se perdeu com o tempo, a migração para a cidade grande e a chegada das novas gerações. Saudades de meus avós e do Pai Inácio, de quem sempre lembro com o carinho e o amor que eu tinha pelo vô Salvador.

PS: A foto eu peguei no perfil da Rozane Reis, no Facebook, que mantém uma página sobre Tebas.