quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Não posso deixar de falar de Clarice

Há três dias tenho acompanhado pela web a polêmica em torno do artigo do Gregório Duvivier, publicado pela Folha, em que ele fala de seu amor por Clarice Falcão. Vi gente apaixonada pela declaração de amor póstuma de Gregório, gente colocando em dúvida sua sinceridade e homens se perguntando a razão do sucesso do texto. Uma perplexidade que, pelo que entendi, motivou o humorista Rafinha Bastos a fazer um registro sobre seu próprio casamento. Desta vez, só vi gente baixando o porrete em sua vulgaridade. Li os dois textos e vi verdade em ambos. Os casamentos são assim mesmo, ambíguos. Mas isso pouco me importa, afinal, casamento é igual à opinião: cada um tem o seu. O que me importa, aqui, não é falar sobre a natureza de cada opinião, mas, sim, do excesso delas. Mais ainda. Do excesso de exposição de nossa vida privada que praticamos hoje. O amor de Gregório e Clarice, que já morreu, não precisava ter vindo à público, profanado em uma página de jornal, assim como a intimidade de Rafinha e Junia também não. Em busca de likes, audiência, um lugar ao sol, estamos transformando nossa vida em mercadoria, nossos sentimentos em enredo de novela, nossa experiência em banalidade. Não falo de memórias, reflexões, análises apoiadas em nossa própria experiência - afinal, pensamos à partir dela - que já deram bons e belos textos para a humanidade. Mas será que é preciso expormos tudo o que vivemos? Da nossa ida ao banheiro de porta aberta ao nosso choro de separação? Com que cara entrar no elevador e cumprimentar o vizinho - aquele de quem não gostamos -, se ele está com o jornal com nossas confissões mais íntimas debaixo do braço? Como encarar o chefe, de quem escondemos as verdadeiras razões de nosso atraso, depois de ele ter lido que passamos a noite em uma balada, bebendo sei lá o quê? Talvez torcendo para que não seja preciso encontrar essa gente cara a cara, nos mantemos refugiados no Facebook ou então ouvindo a voz fraca de nossas avôs, donas de um saber ancestral, nos dando aquele velho conselho, de que é preciso pudor na vida. Sei que lutamos muito para derrubar essa moral pudica, mas me permito meter a mão neste saber e, com um toque de modernidade, reduzir esta receita a apenas um pouco de pudor. Só um pouco. O suficiente para proteger nosso ego das críticas despudoradas de que são vítimas aqueles que muito se expõem na rede. Digo isso, aqui neste blog, onde registro as impressões de leitura com meus filhos, por ter tido em todos esses anos a preocupação de falar de nós, sem nos desvelar por inteiro. Um pouco apenas, como nosso tempo nos exige ou permite, mas não de corpo inteiro a ponto de me sentir nua diante daquele amigo não tão íntimo. Um exercício sem fim, que me faz, ao mesmo tempo, ser acanhada e ousada para tentar acertar. Espero que tenha conseguido, para evitar que meus filhos, um dia ao se debruçarem sobre esses textos, se sintam traídos e percebam que, neste tempo todo, eu não estava falando deles, mas apenas do amor que sinto por eles. Assim faço, neste modesto blog, como já o fizeram muitas mães, que falaram de seu amor por seus filhos por meio de livros. Obras que graças ao talento dessas mães - grupo do qual, sem nenhuma falsa modéstia, estou excluída - transformaram-se em obras fundamentais para a nossa literatura para crianças. O que me faz lembrar - me desculpa o oportunismo - de Clarice. A minha Clarice não é a de Gregório, é a Lispector. Nunca a conheci, mas a amo de longe, mesmo envolta em mistérios, que ainda não desvendei por falta de tempo de terminar sua biografia. A minha Clarice registrou em literatura um "pedido-ordem" de seu filho Paulo para que escrevesse uma história só para ele. O mistério do coelho pensante é essa história, só para o Paulo, que revelada da intimidade da família, sem desvelar todos os seus mistérios, faz a alegria de muitas crianças que nem desconfiam quem seja Clarice ou Paulo e Pedro, seus filhos. Não há dúvidas de que Clarice, com sua escrita que faz o leitor se perguntar se ela fala de si ou de um outro inventado, nos provoca a pensar sobre um tempo que, ao que parece, nos convida a perder de vez o pudor.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Nosso coração faz tum-tum por vocês

O Antônio e o Xico são mais que amigos. Como diz a Juliana, são parças. Daqueles parças que entendem o outro só com um olhar, um sorriso ou mesmo com os muitos e muitas vezes pensamentos, digamos, nem tão bons, assim.
Mas erra quem pensa que eles são muito parecidos. Qual nada? O André os descreve como o tempo e o vento. Meu Antônio, que ignora a existência do tempo, é o próprio. Já o Xico, assim como o vento, passa voando ao nosso lado. O resultado do encontro do tempo com o vento é sempre um tufão de boas lufadas, em que a gente nunca sabe, como bem observa o Cadoca, quem é o culpado.
O maior amigo deles é, sem dúvida, o chão. Chão para correr, rolar a mais que amada bola, escorregar, sentar e, se nada mais houver para fazer, deitar. Uma proximidade que faz com que eles tenham, muitas vezes, a cara, o cheiro e a cor do chão. Este mimetismo faz deles largos como o chão.
No chão da cidade, se viram como podem. No clube, no parque, em casa, no play, na escola, onde e como der. No chão da Kihu, descobrem um novo universo em cada tufo de grama, em cada buraco na terra, em cada pedra perdida no terreno. Ali são mais que o Tempo e o Vento. São os amigos inseparáveis. Uma amizade inspiradora, que fez com que o Vento, improvisasse:
- Tom-tom, meu coração faz tum-tum por você – disse, sorridente, para ocupar o tempo, nessa manhã modorrenta, aqui em casa.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Entre mim e o outro há mais do que um bife e uma pipoca

Tenho dois filhos, como os seguidores desse blog sabem. Dois meninos, um de 14 e outro de 9 anos, que têm toda a vida pela frente. Sonhei para eles com um Brasil mais justo, que fosse dando passos largos para se afastar do país em que vivi grande parte da minha vida. Um Brasil em que mulheres pobres entravam todos os dias na minha casa - seja minha ou a da minha mãe - para lavar pratos, latrinas e roupas e cozinhar a comida nossa de cada dia. Não raro, estas mesmas mulheres saíam da minha casa, com a certeza de que, na delas, estariam sujos os poucos pratos que tinham, também suja a única e velha latrina e quase vazias as panelas gastas. Ainda pior. Seus filhos, aqueles mesmos meninos pobres temidos pela família das patroas, estariam entregues à própria sorte, soltos na rua, driblando o azar, ou trancados em casa para se proteger da violência de um mundo em que não havia lugar para eles. Um Brasil onde nós, filhos da elite e da classe média, dividíamos nossa infância com crianças pobres, que estariam presas para sempre à pobreza e a uma espécie de minoridade cidadã. A nós era dada a promessa de crescer e ganhar o mundo. Adultos, assumíamos o lugar de nossos pais, enquanto os meninos pobres buscavam seu lugar na área de serviço. Uma realidade que era naturalizada pelo discurso do mérito ou da falta dele, que escondia a verdadeira origem do problema. Um discurso que perdoava a todos nós por seguir a vida, sem nos revoltarmos ou solidarizarmos com aqueles que, um dia, foram nossos amigos de infância. Eu vivi isso e não vivi só. Cresci, fui para a faculdade; errei, tive outra chance; me empreguei, construí uma carreira; me descolei da minha infância, onde, tenho certeza, absoluta certeza, muitos de meus amigos continuam. Waldemar é deles o que mais me marcou. Filho de uma família de lavradores pobres do interior de Minas, que expropriados da terra foram parar na cidade, onde viviam sem muita função, esquecidos pelos bem-nascidos, Waldemar era semi-analfabeto e, por isso, sofria, coitado, com nossas risadas diante de sua ignorância. Um dia, sem mais, Waldemar parou de brincar comigo e meus irmãos para trabalhar como jardineiro na fazenda de minha família. Nós, então, adolescentes o esquecemos e começamos a planejar uma vida bem longe dali. Ele, no entanto, foi ficando por lá e tenho certeza, ainda hoje, está está no lugar que foi de seu pai, junto com outros milhões de brasileiros que ficaram para trás no processo de modernização conservadora pela qual o Brasil passou nos últimos 50 anos. Entre nós ficou mais do uma enxada a separar nossos mundos. Fechou-se uma porta, a mesma que se abria para ele, na minha infância. Por ela, não havia como alguém, como Waldemar, passar, e nós, naqueles dias, não estranhávamos esse sinal fechado. A minha sorte foi ter tido, do lado de cá da porta, uma família que, apesar de todos os seus vícios de classe, sonhava com um mundo sem portas fechadas, mesmo que ele nos parecesse distante. Eu cresci, atravessei muitas portas e deixei Waldemar para trás, mantendo-o prisioneiro em minha memória. Waldemar me serviu mais como uma bússola do que como uma lembrança. É em sua figura de menino de coração bom e ingênuo que me fixo todas as vezes que preciso escolher um lado na vida. É do lado dele que me coloco todas as vezes que a vida me pergunta com quem quero me irmanar. É nesse sentimento, que sei não ter mais nada de amor ou amizade, que reafirmo meu compromisso ético com um mundo menos desigual e mais justo. É este mundo que quero legar a meus filhos, para permitir que, estejam onde estiverem na vida, possam se emocionar com o que é humano, mesmo que essa humanidade, como nos ensinou João Cabral de Melo Neto, seja uma vida severina. E é por isso que, aqui em casa, as mazelas humanas estão sempre em pauta. Não vou, é claro, impor aos meus filhos doses diárias de sofrimento alheio, mas, também, não vou educá-los como se eles não tivessem nada com isso. A melhor maneira que encontrei de colocá-los diante da dor alheia, em um mundo com tantas portas fechadas a nos separar dos outros, é a experiência que a literatura nos proporciona. Ler é sempre um bom exercício de empatia e alteridade e, por isso, não devemos ter medo quando nossos filhos se emocionam com os livros. Ver os olhinhos deles marejados nos aperta o coração, sei disso, mas também nos dá esperança de que sejam pessoas capazes de experimentar-se na experiência do outro, o que é, nesses dias de individualismo exacerbado, um alento e uma esperança. Esse exercício de alteridade é desconfortável, mas acima de tudo é necessário e a literatura é uma boa maneira de vivê-lo. Nem sempre ela nos faz rir ou sonhar, como muita gente acredita que seja seu papel. Muitas vezes nos faz sofrer, um sofrimento que nos permite adiante um sorriso e um sonho ainda melhores. Esse caminho nos é oferecido por muitos livros para crianças, mas destaco aqui o conto O bife e a pipoca, de Lygia Bojunga, editado em Tchau, pela Casa de Lygia Bojunga, pela coragem de sua narrativa. A autora narra, sem constrangimentos, o encontro de Rodrigo, filho da classe média, com Tuca, menino de favela que estuda, graças a uma bolsa, em uma escola de bacanas. O conto é preciso no espanto que os dois experimentam ao se aproximarem. Um encontro que revela as diferenças entre seus dois mundos. Na casa de classe média, não é preciso razão para se comer um bom e suculento bife, já, na casa do pobre, a pipoca é servida como iguaria fina. Um contraste que dói no estômago do leitor e faz a leitura do conto se constituir em uma experiência sofrida, mas necessária por fazer nossos meninos pensarem no desconforto do outro e no quanto, esse sentimento, nos afeta, O Pedro, meu filho, leu o conto na escola, aos 10 anos, e foi convidado pela professora a escrever uma carta, aos moldes do que Rodrigo escrevia para seu melhor amigo, contando sobre sua relação com Tuca. A carta do meu menino deu conta do seu espanto com a história de Tuca e Rodrigo e apontou para o entendimento de de era possível conviver e aprender com alguém tão diferente dele. Uma carta de um menino chocado com uma dor que não imaginava existir e que lhe foi apresentada pela narrativa de Lygia, sempre corajosa ao colocar o dedo na ferida. A literatura é assim, como minhas memórias de infância, em que tantos ficaram para trás, um pouco de dor e de delícia. Ao lidar corajosamente com essa dualidade de sentimentos, ganhamos a possibilidade de andarmos para frente. Assim na literatura, como na vida, não podemos nos livrar dessa dualidade. Quem tenta passar ao largo desse desconforto, acaba se livrando da empatia, aquele sentimento que nos torna humanos e nos liga aos outros. Por isso, eu luto. Para, como disse Vinícius de Moraes, "ninguém tivesse mais que lutar".