quinta-feira, 22 de junho de 2017

A imaginação é uma preciosa arma contra o consumismo

Em um mundo em que o consumo é uma entidade quase divina, capaz de ordenar a vida dos mortais, qualquer alerta contra ele é bem-vindo. É preciso mudar de rota, encontrar novos caminhos para evitarmos nos perdermos no labirinto do consumismo. Mas estes caminhos só nos serão mostrados se nos abrirmos para prazeres mais comezinhos, que podem ser fruídos à revelia do poder da grana. O maior deles, a imaginação, é bem conhecido das crianças e preenche qualquer vazio. É com ela que Satoshi Kitamura, premiado ilustrador japonês, aceita o convite do igualmente premiado escritor sul-africano, Hiawyn Oram, para entrar No sótão. A história de Oram ganha novos contornos com o traço quase mágico de Kitamura. Os dois, em prosa e imagem, nos levam para o quarto de um garotinho que está entediado, apesar de cercado de brinquedos, até que a imaginação o vem salvar. Embarcado nela, o menino entra em um sótão onde a realidade é ampliada pela fantasia. Ali, Oram e Kitamura andam de mãos dadas para conduzir o leitor. A palavra precisa e as imagens quase psicodélicas se fundem em uma única mensagem, que, seguindo as leis da imaginação, nos permite várias interpretações. A beleza do livro, editado originalmente em Londres, nos chega pela Pequena Zahar Editora com 34 anos de atraso, mas sem nenhum prejuízo. O menino que entra no sótão de Oram e Kitamura poderia ser um de nossos filhos e o recado enviado por ele, ser endereçado a qualquer um de nós, pais contemporâneos, sempre tão preocupados em proporcionar o melhor para as crianças. Pedro, hoje com 15 anos, com quem aprendi aos poucos a ser mãe, me ensinou que seu prazer não viria com a quantidade de brinquedos, que eram muitos naqueles dias de filho único recém-chegado. Suas escolhas eram sempre as mesmas, em meio a tanta quinquilharia, e quase nunca recaiam sobre os brinquedos mais caros e modernos. Ele gostava mesmo era da coleção de bichos de borracha que usava para criar fazendas, florestas de dinossauros e savanas africanas, por onde andava com sua imaginação o dia todo. Depois, vieram os bonecos articulados, sempre os menores, que o ocupavam e o faziam ignorar dezenas de brinquedos mais atraentes aos olhos dos adultos e, por fim, as bolas em qualquer formato e cor. A montanha de brinquedos acumulados em seus primeiros anos passou como herança para o Antônio, que pouco contribuiu para seu crescimento e mais ainda a ignorou. As escolhas do caçula eram ainda mais restritas e recaiam sempre sobre os blocos de montar, a massinha de modelar e as bolas. Os jogos eram as opções em momentos em que eu e o Cadoca sentávamos para brincar com eles e nada mais. Ainda hoje há aqui em casa muitos brinquedos que estão esperando que eu mais uma vez organize o quarto dos meninos e doe o que está sem uso. Nesse tempo em que eles estão conosco, aprendi muitas coisas, mas a melhor delas eu sabia desde criança, mas andava um pouco esquecida. Com eles lembrei de quando encontrava prazer em copos de iogurte que, unidos com barbante, viravam telefones ou sozinhos, galinhas com canto estridente; em revistas velhas que faziam as vezes de cadernos de alunos que eu não tinha; em folhas de árvore, pedrinhas e areia que eram ingredientes das mais deliciosas comidas que preparava em panelinhas de plástico; em cobertores e lençóis que montavam misteriosas barracas; em cartões velhos que formavam a minha mais querida coleção; e no prazer de colher, catar e organizar as coisas do mundo, segundo minha imaginação. Desta forma, criava um mundo se encaixava perfeitamente em minha vontade e lá ficava horas. Naqueles dias, nem sabia do poder que as crianças tinham nas mãos e que, hoje, vai sendo vencido aos poucos pelo consumismo e a convicção de que tudo que desejamos está pronto em alguma prateleira. O prazer como exclusividade de quem pode consumir, não mais uma possibilidade de nossa condição humana. Para restabelecê-lo é preciso, antes de tudo, remar contra a maré do consumismo e apostar na imaginação, como um direito humano. Nossos filhos não podem se ver privados dela em nome de nada, tampouco em nome de um conforto que não pediram. O que No sótão nos ensina, sem a pretensão de fazê-lo, é que as crianças, apesar de tudo, ainda não esqueceram do poder da imaginação. Uma lição que outro dia, em uma reunião de pais da turma do Pedro, ouvi da coordenadora da escola ao recomendar que não déssemos muito dinheiro aos filhos, que viajariam com a escola. "Vou lembrar aqui de uma história muito antiga, da época dos conflitos da Rússia com a Mongólia. Os príncipes mongóis foram tomados como prisioneiros e educados com o luxo e o requinte da corte dos czares. Anos depois, em um tratado de paz, eles foram trocados por prisioneiros russos, que estavam no Império Mongol, e, prestes a deixar a corte dos czares, lhe perguntaram o que levariam daquela vida requintada que ali viveram. A resposta foi simples. "Nada. O que vivemos de melhor nesses anos estão aqui, em nossa memória", disseram. E é isso que temos que ensinar a nossos adolescentes: que o melhor de uma viagem não são as coisas que compramos nela, mas, sim, as lembranças das experiências que vivemos", disse a coordenadora, nos mostrando que edução é muito mais do que o ensino de Matemática ou História, é sobretudo a possibilidade de preparar nossos filhos para uma vida com mais significado e magia, que possa vencer, assim como fez o menino de No sótão, o vazio reservado a quem só acredita no consumo.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A beleza das pequenas coisas e os rumores do mundo

Ando meio sumida daqui. Quase não tenho falado sobre minhas leituras com os filhos, na verdade, com o Antônio, já que o Pedro, com 15 anos, não compartilha mais comigo suas poucas aventuras literárias. O Antônio, sim, ainda quer dividir com a mãe os livros que lê ou tenta ler. Nos últimos tempos, temos nos aventurado por histórias longas, em várias sessões de leitura. A melhor delas, com certeza, foi Bambi, uma novela belíssima do austríaco Felix Salten, que me surpreendeu por sua riqueza, infinitamente maior do que a apresentada no também belo filme da Disney. O livro levou Antônio a ver o filme, que adorou, e a concluir que a história que estávamos lendo era muito mais legal que sua adaptação para o cinema. Uma bela lição que o fez ver que ler o livro e ver o filme são experiências muitos distantes e que ambas podem ser boas. O Bambi de Salten é muito mais do que o fofo filhote de cervo, apresentado no filme. Ele é um animal atento a seu meio, aos outros animais, enfim, à riqueza da natureza e à presença intrusa e ameaçadora do homem. O título original do livro, A vida na floresta, me parece mais acertado do que Bambi, que, certamente, se impôs na tradução brasileira da Cosac Naify pela notoriedade que o filme lhe conferiu. Mas não é Bambi o assunto do livro, é a vida na floresta contada sob a ótica do personagem. É sobre Bambi que o olhar do narrador se fixa para nos levar para um passeio surpreendente pela floresta habitada por uma infinidade de animais, pequenos e grandes, que reconhecem majestade no grande e elegante porte dos cervos. Mas, apesar de referências ao mundo dos humanos, como a importância da linhagem de Bambi, os animais de Salten não são humanizados e, por isso, não se prestam a um tradicional recurso da literatura infantil, o antropomorfismo. Eles são animais descritos na linguagem dos homens, que se contorce para reproduzir sua relação com o ambiente em que vivem. Os leitores mais atentos serão capazes de sentir o inicial estranhamento de Bambi com tudo o que lhe cerca, de ouvir o canto e a revoada de pássaros ou farfalhar de folhas, de se surpreender com o verde da floresta e a beleza dos animais e de sentir a fome e o frio impostos pelo inverno. Sentimentos que nos chegam, sem alarde, pela prosa de Salten que está colada com o universo da floresta e nos revela as luzes, os sons e as sensações vividas pelos personagens do livro. Essa simbiose entre objeto e palavra, conseguida pelo autor, é a grande beleza da narrativa, que nos fala de um tempo que a cidade matou e direciona nosso olhar para pequenos detalhes, que a vida corrida não nos deixa ver. Em Bambi o que importa é perceber aquela experiência pequena e rica do vento no corpo, da fome na barriga, da luz nos olhos, da voz nos ouvidos, enfim, dos rumores do mundo e de nosso corpo. Uma harmonia quebrada apenas pela presença dele, o homem, na floresta, com seus cães e máquinas de morte. Não há aproximação possível do mundo da floresta com o homem. Ceder ao homem é perder-se, desproteger-se, anular-se. É isso que Bambi nos ensina, nada mais. Não há tentativas de usar Bambi para falar de um menino que está aprendendo a moral da vida. Bambi é um cervo e move-se na floresta como um cervo e é isso que encanta o leitor. Eu e o Antônio adoramos seguir os passos de Bambi na floresta. A cada pequena emoção de Bambi, a fome, o frio, a perda da mãe, do amigo, a descoberta do amor, o encontro com o pai, enfim, suas experiências, o Antônio reagiu de forma diferente, mas sempre se emocionou com a história. O melhor foi ele ter sido capaz de acompanhar o ritmo lento da narrativa, em oposição à velocidade de nosso tempo, para acompanhar com paciência e encantamento a trajetória de Bambi e poder compartilhar com o personagem suas alegrias e tristezas. Bambi não quis nos ensinar nada, mas nos revelou que há beleza nas pequenas coisas e que, para vê-la, é preciso ouvir os rumores do mundo e de nosso corpo. Isso se o barulho da cidade nos deixar percebê-los.

PS: A má notícia é que a edição brasileira, com a primeira tradução da novela para o português a cargo de Christine Röhring, está fora de mercado. O livro editado com capricho pela Cosac Naify, que fechou as portas no final de 2015, só é encontrado em sebos ou na Amazon. A procura vale a pena. A belíssima história nos é apresentada em um livro de capa dura, encapado com tecido, e traz belas ilustrações de Nino Cais, que trabalhou com colagens de silhueta dos bichos sobre recortes de livros de botânica. Um luxo.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O verde de meu ver o mundo



Amanhecer 

Através de minhas lentes castanhas,
vejo todo o verde do mundo.
Um verde múltiplo, 
um verde sem fim,
que se espalha, esparrama
pelo chão, pelas pedras, pelos muros,
sobe o céu, escalando meu olhar.

É quando explode sob o azul celeste,
- fugindo do cinza opaco da cidade -
um radiante espectro de verdes,
que deixa sombras no preto do asfalto,
já singrado de prata por linhas de aço.

Meus olhos percebem o verde musgo,
dividindo espaço com o verde alface,
o verde periquito, o verde mangueira,
o verde palmeira, o verde samambaia,
o verde matinho, o verde maria-sem-vergonha,
que juntos colorem o verde do meu ver o mundo,
o verde do meu coração.

Um verde que me acorda bem cedo pra vida
e um dia, tarde eu espero, 
vai me acolher no leito da morte. 

Rio: 27/4/17