sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Eu, o jornal, os poetas e a vontade de habitar meu tempo

Jornal foi uma paixão na minha vida. Não me lembro de um dia sequer na minha infância em que ele não estivesse lá, nas mãos do meu pai, que abria aquelas páginas enormes, abundantes de notícias e anúncios impressos em papel frágil que manchava suas mãos. Eu, mesmo infante, não ficava alheia àquele mundo de adultos em que se discutia os rumos do país e da humanidade. Via o jornal quase como um oráculo dessacralizado que permitia ao leitor se debater contra suas previsões. Eram palavras ao vento, que mobilizavam moinhos. Um primo do meu pai, vizinho de nossa casa de campo, chegava a ficar rubro de raiva ao ler O Globo, que se alinhava à Ditadura Militar, e dizia, com uma voz firme que me parecia ampliada por um megafone, que lia O Globo para se irritar e o Jornal do Brasil para se informar. Nós, como ele, nos ligávamos ao mundo que deixávamos para trás, em busca da paz das férias no campo, pela cesta do seu Levi, um homem de meia idade que vendia jornal, biscoito de polvilho, doces, legumes e algumas conveniências raras em um lugarejo como Tebas, no interior de Minas Gerais. Era uma presença marcante, não por sua beleza, que não tinha, mas pela simpatia e acolhimento que sua figura de homem do campo, com vestes simples, sempre limpas e bem passadas, cabelos brancos, bochechas rosadas e mãos gordinhas, nos transmitia. Eu acompanhava as discussões políticas, das quais seu Levy participava, com a boca de menina toda suja de polvilho e os olhos atentos em um mundo que eu ainda não conhecia.
Ele ia embora para cumprir o resto de sua jornada de trabalho e o jornal envelhecia na mão do meu pai e de seu primo. Passado o meio dia, o que as manchetes nos informavam já era notícia velha, sem serventia, e aquelas folhas enormes e sem refinamento iram servir à limpeza da casa ou ao embrulho de produtos que não exigiam grande higiene. Assim, aos poucos, sem me aperceber fui tomando gosto pelo jornal até que, um dia, me convenci de que estar nele seria uma maneira de participar da vida pública. Eu gostava de escrever e me sentia comprometida com a luta por um mundo melhor. O jornal me parecia o lugar certo para quem, como eu, queria denunciar as injustiças sociais na esperança de superá-las. Assim eu fiz. No derradeiro ano da Ditadura Militar, ingressei na Faculdade de Jornalismo da PUC-Rio certa de que estava saindo do meu mundinho para encontrar o mundo. Um mundo que imaginei possível de ser mirado da janela do prédio do Jornal do Brasil, por onde eu passava em todos os meus retornos ao Rio, e, por sorte ou capricho do destino, foi onde tive a minha primeira experiência em redação. Foi naquele prédio imponente, ancorado em frente ao porto, no início da decadente Avenida Brasil, que eu pisei pela primeira vez em um jornal. Era uma menina ainda, com minha maioridade recém-completa, quando a convite de José Carlos Monteiro, meu professor e então editor do Informe JB, entrei naquele salão enorme em forma de H e me deparei com o burburinho característico de uma redação de jornal. Um frisson produzido pelo tilintar das máquinas de escrever e pelo andar frenético de homens e mulheres para lá para cá, atendendo o telefone como se do outro lado da linha estivesse o presidente da República, o Chico Buarque ou o Pelé. Eles falavam alto como se não houvesse mais ninguém naquele ambiente, em que o tempo parecia acelerado e estranho a quem não estivesse ali. O que mais me impressionou foram os fios, muitos fios descendo do teto para as incontáveis mesas de trabalho. Eram materiais conexões com o mundo e, por isso, estar ali e não se imaginar em seu no centro era humanamente impossível. Essa centralidade a faculdade nunca me dera, nem mesmo insinuara e, ao longo
daquele primeiro ano de curso, fui me convencendo de que não mais me daria. Eu tinha pressa e me transferi para a faculdade de Sociologia e Política, onde o meu tempo pulsava com vigor. Vivíamos nosso dia a dia, nos corredores da PUC, como se o futuro dependesse de nós. Mas não. Eu continuava na borda, lutando para, como João Cabral de Melo Neto, habitar o meu tempo, para encontrar, como Octavio Paz, "a porta de entrada para o presente" e, assim, "ser do meu tempo e do meu século". Tempo que só experimentei de verdade em meu reencontro com o jornal, que aconteceria quase uma década depois do meu ingresso na universidade, com meu retorno à PUC e à faculdade de Comunicação. A porta que transpus para me sentir novamente no centro do mundo foi mais uma vez a do Jornal do Brasil, com sua redação, agora, silenciada pelo computador e diminuída pela arrastada crise que acabou definindo o fim daquele impresso que marcou a história da imprensa no Brasil. Ali, comecei minha carreira de jornalista, ali, aprendi quase tudo que sei de texto, foto, notícia e edição, ali, me senti finalmente habitando o meu tempo, o meu século. Habitando-o como eu podia, com todas as críticas e incômodos que ele me causava, mas habitando-o. O importante, como diz o poeta, era estar ali, enquanto ele ocorria, ao vivo. Foram doze anos de redação. Do Jornal do Brasil fui para O Globo e de O Globo para assessoria de imprensa. Mantive-me na política, razão da minha paixão pelo jornal, e,  assim, continuei, mesmo de fora, a fazer parte do mundo das redações. Eu de um lado, repórteres de outro, todos a favor da notícia e eu, sempre, indo ao encontro do meu tempo. Mas o meu século acabou e veio outro, ainda meu, apesar de estranho tempo em que o jornal já não está mais no centro do mundo, em que o mundo não tem mais centro e todos, inclusive eu, vivemos nas bordas. Minha luta, agora, é para habitar as bordas e alargá-las na busca de uma entrada para um novo presente, um novo tempo, um novo século.

PS: Não deixem de ler O jornal, de Patrícia Auerbach, editado pela Brinque-book. Um lindo livro de imagens - de onde tirei as que ilustram esse texto -, que me inspirou a pensar na importância do jornal na minha vida. Assim mesmo, com artigo definido. E já que falamos do tempo: desejo a todos um feliz 2019.