domingo, 15 de junho de 2014

Toda criança tem medo do lobo mau

O medo é um bom tempero para a imaginação, não há quem duvide. Talvez seja isso que garanta sucesso para as histórias de lobo. Afinal, estou para conhecer criança que não tenha medo do lobo mau. Um lobo que come porquinhos e meninas ingênuas e que pode estar em qualquer lugar. É justamente dessa ameaça que Anna Flora fala em Quem tem medo do lobo mau?, editado pela Record e ilustrado por Walter Ono, prestigiado ilustrador da geração de 1970. O livro, de 1987, antecede a atual tendência de Hollywood de desconstruir os tradicionais contos de fadas. Ele foi lançado, no Brasil, um ano antes de, nos EUA, ser editada A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, que, como Anna Flora, contou o embate do lobo com os porquinhos pela visão do algoz. Anna Flora e Scieszka falam de um lobo injustiçado, logrado pelos porquinhos e alçado à condição de vilão por obra do acaso. Mas falam de histórias diferentes. A de Sciesszka já foi comentada aqui no Gato de Sofá. A de Anna Flora foi uma surpresa para mim. Achei o livro em uma banquinha de usados, na Praça São Salvador, no Rio, e resolvi trazê-lo para casa para ler para meus dois meninos, apaixonados por histórias de lobo. O livro, pequenino, em formato de bolso, tem uma narrativa longa, em que o lobo conta para o delegado seu ponto de vista sobre a história dos três porquinhos. A ela se juntam expressivas ilustrações de Walter Ono, que nos ajudam a dar corpo aos fatos. A narrativa de Anna Flora nos prende a atenção até o desfecho de sua história, em que o lobo sai, com a mão no bolso, assobiando um sambinha. Isso mesmo, ela usa e abusa do nonsense para oferecer para as crianças uma narrativa saborosa. O único senão, segundo o Pedro, que acompanhou tudo com a maior atenção, foi o lobo não saborear os porquinhos. "Ele tinha que ter comido os porquinhos", protestou. Faz sentido. Na história original, de Joseph Jacobs, os porquinhos das casinhas de palha e de madeira vão parar na barriga do lobo, em uma narrativa sem qualquer pudor. Afinal, ao contrário das histórias que desconstroem o lobo, como a de Anna Flora e Sciesza, toda criança tem medo do lobo mau. Mesmo assim, sempre vale a pena ouvir o outro lado. Mesmo que, nesse lado, esteja um lobo.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Um livro, como a vida, sempre tem dois lados

Ninguém duvida de que os fatos da vida sempre têm mais de uma versão. Infinitas versões, dependendo da situação, mas, podemos garantir, que, no mínimo, duas. E nem sempre é fácil compatibilizá-las e harmonizá-las. A vida é como ela nos parece ser. Não há vacina contra a má interpretação dos fatos. Não há garantias de que o que vemos de fato existe. Não há, nem mesmo, certezas sobre como são as coisas. Pois é, a visão dupla, o ponto de vista, a interpretação é a matéria prima de Ter um patinho é útil, da autora e ilustradora Isol, a argentina que ganhou, em 2013, o Alma, um dos mais prestigiados prêmios da literatura para crianças e jovens do planeta. O patinho de Isol, editado por aqui pela Cosac Naify, é na verdade a maneira de a autora brincar com esta verdade ou com a constatação da ausência dela. De um lado o patinho é o objeto útil para o menino. Do outro, o menino é o objeto útil para o patinho. Eles se alternam graças a um artifício do projeto gráfico do livro, que é uma sanfona com dois lados. A criança desenrola a sanfona de um lado, para ler a história do menino e quando chega do outro lado, começa a história do patinho. Uma brincadeira que parece simples e destinada apenas a entreter o pequeno leitor, mas tem a capacidade de ludicamente traduzir literariamente um axioma da vida. Não há dúvidas de que, quando um autor consegue esta façanha, a alegria fica por conta do leitor. Aqui em casa foi assim. O Pedro, mesmo já quase um adolescente, com seus 12 anos, se divertiu ao desvendar a brincadeira proposta por Isol. Riu ao fim, com o riso de quem percebe a trapaça da autora. Um livro para ler, tocar, abrir e pensar. Pensar em como a vida tem sempre, pelo menos, dois lados. Feliz de quem logo percebe isso.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Um botão para soltar a imaginação

Temos passado dias frios no Rio. Um friozinho carioca, sei disso, mas um friozinho que nos permite uma blusa de manga comprida de dia e um cobertor de noite. Tempo que nos faz desejar aconchego, que nos lembra que nossa casa é um lugar de afeto e nos afasta da rua, tão querida nessa cidade. Uma hora em que o melhor é buscarmos aqueles que amamos e nos amam. Assim tem sido aqui em casa. Quando a noite chega, eu e os meninos nos aninhamos na cama, juntinhos, para ler histórias. Mas, antes disso, tem muita animação por aqui. Tem que tirar todo mundo da TV, do computador, do Ipod e do álbum de fugurinhas da Copa e colocar os dois para escovar os dentes e vestir o pijama para, enfim, deitarmos. Mas não sem antes o Antônio passar alguns longos minutos escolhendo a história da noite. São vários livros rejeitados, até chegar ao escolhido. Aperte aqui, de Hervé Tullet, editado pela Ática, faz parte dos poucos que merecem a atenção do Antônio. Ele tem razão em gostar do livro que chegou aqui em casa pela ciranda da escola e, diante de seu entusiasmo e do Pedro, com a brincadeira proposta por Hervé, mereceu ser comprado para nossa estante. O autor francês, já comentado aqui por Sem título, da Companhia das Letrinhas, parece ser, pelos dois livros publicados no Brasil, um mestre em brincar com a imaginação. Se, em Sem título, ele convida o pequeno leitor a viajar pela criação da narrativa, em Aperte aqui, ele brinca com a ideia de que o virtual não é um produto apenas das plataformas digitais e de sua capacidade de criar novos realidades, mas que é, sobretudo, um produto da imaginação humana. Ao convidar as crianças a apertarem, virarem, balançarem, chacoalharem o livro, Hervé reproduz nas duas dimensões possíveis da folha impressa os jogos virtuais de computadores e tablets que as crianças tanto gostam. E a viagem, posso garantir pela reação do Pedro e do Antônio, é a mesma. Ninguém deixa de se divertir porque não vê as bolinhas caindo, como nos joguinhos eletrônicos. Elas não caem, mas o livro nos faz imaginar que elas estão caindo e é isso o que importa. Hervé nos faz lembrar que antes do mundo virtual criado pelos computadores, havia imaginação. E com ela, ninguém pode, nem mesmo a realidade.