terça-feira, 10 de novembro de 2015

Antônio e o poder das narrativas

As crianças, com sua capacidade de acreditar no que sabem não ser verdade, nos fazem pensar no poder das narrativas. O poder de envolver o outro com a palavra, de criar novos mundos e pessoas, de desafiar a realidade e seus mandatários e de fazer sonhar de olhos abertos. Assim, tem sido desde que o homem criou a linguagem, com suas artimanhas e áreas de sombra. O cotidiano e sua ordem, no entanto, é cruel. Engessa a palavra e endurece quem a ouve ou, muitas vezes, a ignora. Por isso, é sempre bom estar cercado de quem, como as crianças, apreende o mundo com outra lógica e, assim, é capaz de deixar-se envolver sem pudor pelas narrativas. Este é o prazer de ler para crianças. É o prazer de ler para o Antônio, que, com 8 anos, ainda não rendeu-se totalmente ao mundo, como pude perceber outro dia, quando ele respondia a um dever de casa sobre O saci, de Monteiro Lobato, editado pela Globo, que está relendo com o maior entusiasmo na escola. A questão era sobre o capítulo em que o Tio Barnabé conta para Pedrinho sobre o moleque endiabrado de uma perna só. A professora queria saber se ele acreditava na história contada por Tio Barnabé e pedia que justificasse a resposta. Ele olhou para mim e pediu: "Mãe, me ajuda a responder certo?" O apelo me entristeceu por revelar o quanto a interpretação de texto exigida pelas escolas, por mais que lutem contra isso, como é o caso da dele, tira a liberdade do leitor. E tentei desfazer a ideia de que em leitura há um certo ou errado. "Ah, Antônio, não tem certo ou errado. Tem o que você acredita. Você acredita que a história do Tio Barnabé é verdade ou mentira", provoquei. "Acho que é verdade", respondeu. Novamente, como o pedido pelo dever, perguntei o porque de ele achar que era verdade. "Por que o Tio Barnabé contou muito bem a história do saci", disse, resumindo tudo. A verdade é isto, não é o que existe, mas o que nos convence, e só a narrativa tem esse poder. O Antônio entregou-se sem críticas ao relato de Tio Barnabé, envolvente e detalhado, para dar conta a Pedrinho das diabruras do saci. A história era sua velha conhecida, já que eu a lera para ele há pouco mais de dois anos, mas era como fosse inédita. Ele acompanhou a narrativa interessado e ao mesmo tempo obediente ao planejamento da professora. "Não quero adiantar a história. Quero ler com meus amigos", justificou-se. E, assim, o fez. Para sua sorte, depois de uma semana em casa com catapora, voltou à escola e descobriu que a turma não avançara na leitura. Veio me contar animado que não perdera nada do livro. No tempo em que ficou em casa, lemos outras coisas e ele passou seu tempo entre brincadeiras com o irmão, jogos e TV. Muita TV para meu gosto, mas foi diante dela que me mostrou mais uma vez que não tem pudores diante das narrativas. "Mãe, estou chorando de felicidade", me disse, quando o surpreendi chorando com um filme. "O cara passou um tempão procurando a namorada e o filho e agora os achou", disse com o rosto molhado pelas lágrimas. Olhei para aquela carinha fofa de menino, que ainda guarda as bochechas do bebê que foi um dia, e lhe disse que não precisava ter vergonha de estar chorando. "A gente também chora de felicidade, meu amor", disse, torcendo para que ele nunca se arme contra as narrativas e o mundo que elas propõem.

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