quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Uma história para ler, brincar, experimentar e existir

A capa de Dia de pinguim, do autor e ilustrador ucraniano Valeri Gorbachev, é apenas um tira-gosto da delícia que nos espera no interior do livro, editado pela Companhia das Letrinhas. Delicadeza, lirismo e fantasia é o que nos dá Valeri com seu Tartaruguinha, protagonista da história, que se diverte experimentando novas possibilidades de existência. Mesmo que esta experimentação se dê apenas na fantasia, como em uma brincadeira. Tartaruguinha, que cisma ser um pinguim, é, na verdade, uma de nossas crianças travestida pelo recurso do antropomorfismo em um filhote de tartaruga. Aliás, o antropomorfismo que busca nos traços e características animais semelhanças com seres humanos é um recurso comum na obra de Valeri, que tem mais de 40 livros publicados, e mais ainda na história da literatura infantil. Não há como negar que um belo desenho de um animal vestido como gente nos invade de ternura, por mais que saibamos da nova tendência das ilustrações de bichos que fazem as vezes de homens, mulheres e crianças é apresentá-los em sua própria pele, apesar de eles continuarem agindo com a moral dos humanos. A ternura dos desenhos de Valeri está a serviço do elogio à imaginação e à fantasia que podem ser despertadas por uma boa história. Em Dia de Pinguim, o Tartaruguinha fica encantado com uma história de pinguins que seu pai lhe conta e resolve ser um deles, assim como o meu Antônio no processo de identificação com seus amigos quis até mudar de nome. Experimentar, isso que o personagem de Valeri e o meu filho quiseram com suas brincadeiras. Tartaruguinha ganhou toda a sua turma para sua brincadeira, já o Antônio arrumou a maior confusão ao decidir que se chamaria Lucas, assim como um de seus melhores amigos. Seus colegas embarcaram como puderam em sua fantasia e passaram a chamá-lo de Lucas Antônio, o que o desagradou sobremaneira. Teve choro, vela e muita reclamação até ele entender que é melhor vivermos sozinhos algumas fantasias para evitar o risco de confundir quem está de fora de nossa viagem. Já o Tartaruguinho, com a ajuda do livro de seu pai, conseguiu levar todos os seus amigos para sua viagem. Os amigos e os leitores de Valeri. Acho que vou sonhar que sou uma tartaruguinha. E você?

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Natal é tempo de renascimento


Hoje é Natal! Queria ter escrito antes para desejar a todos um feliz dia, mas me enrolei e meus votos vão agora, quase na hora da ceia. Votos de quem não acredita mais em Papai Noel, mas continua acreditando que a vida pode ser bem melhor e será. A menina de Andersen também! Apesar de todo o sofrimento, ele aposta no futuro. Ela nos ensina a estender a mão a quem sofre e, mesmo se não chegar ajuda, a superar nossas próprias dores. Afinal, Natal é tempo de nascimento e, por que não, de renascimento. Assim espero que seja para todos nós.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Um leão feito de medo e de coragem

Millôr Fernandes e Flavia Maria Lobo se encontraram muitas vezes em vida. Eram amigos e tornaram-se  parceiros com o livro Maurício, o leão de menino, editado pela primeira vez em 1969. Quarenta anos depois, a história do menino assustado com o leão que dormia em seu armário ganhou nova e caprichada edição, com o selo da Cosac Naify. O formato do livro, como diz o catálogo da editora, faz jus a grandeza de um leão e, eu diria, da história. A nova edição, exibida como biscoito fino nas prateleiras das melhores livrarias, deu às novas gerações a oportunidade de conhecer Maurício e a amizade da autora e do ilustrador. Amizade que foi marcada por uma final coincidência, que fez a morte bater na porta dos dois com um intervalo menor do que uma semana, entre o fim de março e o início de abril deste ano. A morte, no entanto, não foi capaz de levar o que eles produziram juntos. Maurício é um pouco do frescor do Rio do início do desbunde e de suas improváveis e deliciosas histórias. Flavia Maria e Millôr são gente que fala de medo, com o humor dos transgressores e sem as delicadezas do politicamente correto, que, infelizmente, infectou muitos livros destinados às crianças nesta virada de século. Maurício é mais um dos fantasmas que as crianças criam para expressar o mal estar com a descoberta de que o mundo é um lugar imprevisível e inseguro para se viver. Um mundo que pode ser escuro, como a noite e o papel usado na impressão do livro,e, ao mesmo tempo, ser aos poucos desvendado pelo surgir do amarelo e do amadurecimento do menino que, à medida que vai crescendo, aprende a enfrentar seus fantasmas. Fantasmas que incluem seus pais quando ficam bravos. Afinal, que menino não tem medo dos berros dos pais. Os meus, Pedro e Antônio, se tremem quando percebem que nossos gritos são de verdade. Talvez por isso tenham adorado a hora em que o leão do menino enfrenta seus pais. A vingança é um prato que se come frio ou, na pior das hipóteses, se saboreia com a imaginação. Flavia sabe disso e teve a coragem de cutucar pais e filhos em uma narrativa que fala com verdade e de verdades para as crianças. O traço de Millôr, que todos nós conhecemos, engrandece a história de Maurício ao nos dar a possibilidade de viver esta catarse com humor. Afinal, não temos saída fora do humor ou da ternura para falar das verdades da vida para as crianças. O mundo é de fato imprevisível e inseguro, mas, se explorado com humor e ternura, pode ser uma experiência deliciosa.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Glória às crianças, aos loucos e aos artistas!

Meu pai sempre foi um aficionado por tirinhas e histórias em quadrinhos. Até hoje ele tem uma coleção delas em sua mesa de cabeceira para a noite. Ele lê quietinho, pitando um cigarro, o único do dia, antes de dormir. Ri das graças de personagens para crianças, como Tio Patinhas e Peninha, e de tirinhas para adultos, como as do nosso Henfil e de Calvin e Haroldo, do americano Bill Watterson. Desta paixão, herdei apenas o gosto pelas tirinhas, que falam das coisas da vida com o humor típico dos cartunistas. Um talento que invejo. O talento de falar pouco e falar tudo. O talento de desenhar em tão poucos traços a alegria, a tristeza, a indiferença, a surpresa, o ódio, o amor, enfim, as emoções que animam a vida. Não fosse isso o bastante,  Watterson conseguiu falar do mundo dos adultos, em Calvin e Haroldo, com a lógica das crianças, como se não tivesse crescido. Este é o talento que mais invejo. Quem lembra de si, quando criança, ou convive muito com elas sabe que Calvin é um menino de verdade. Sua amizade com o tigre de pelúcia Haroldo é ainda mais. Aqui em casa, o Antônio tem o Otto, um cachorro amarelo, de orelhas compridas, feito de pano, que o acompanha e compartilha alguns de seus bons momentos na vida. Sua lógica também é muito parecida com a do Calvin e algumas de suas conclusões poderiam ser muito bem, se eu tivesse o talento de Watterson, transformadas em tirinhas de sucesso. Outro dia ele me apareceu vestido com uma camiseta do Calvin e Haroldo, presente do Cadoca, outro aficionado pela dupla, e um short floral de tons terrosos, dizendo orgulhoso que as peças estavam combinando. Eu, que ultimamente o tenho pressionado a combinar as roupas que escolhe para vestir, olhando a harmonia das cores, disse que sim. Foi então que ele me surpreendeu. "Olha só, mãe! O short é de flor, o menino gosta de flor e o tigre também. Por isso, está combinando, né?" Só me restou rir, como rio do Calvin e Haroldo. Com esta lógica ele agora explica todas as suas combinações, que deixaram de ser por cores e passaram a ser temáticas, como se suas vestimentas fizessem parte de uma narrativa ambulante. Uma delícia de visão de mundo que vamos perdendo à medida que crescemos. Na boca dos adultos, discursos como o do Antônio ou o da tirinha acima sobre o potencial literário da matemática, descolados da ordem das coisas, são imediatamente taxados de arte ou loucura. Mas podem também ser a razão oculta de daltônicos em sua tentativa de combinar roupas ou de alguém, como eu, ter se dado mal toda a vida nas provas de matemática. Uma pena que já não possamos mais proferi-los! Por isso, não nos restam alternativas a não ser dar vivas às crianças, aos loucos e aos artistas!