sexta-feira, 30 de março de 2012

Uma nova chance para a história do Brasil

O Pedro está estudando na escola a colonização brasileira e, em decorrência disso, as violências cometidas pelo português contra os índios nativos e os negros africanos. Seu primeiro espanto com este mundo, perdido no passado, foi saber que havia mais de cinco milhões de indígenas em terras brasileiras, quando o português-branco-colonizador por aqui chegou, e que hoje, o resultado do extermínio desses povos é termos apenas 300 mil índios entre os brasileiros. Ele ficou chocado também com a violência da escravidão negra, que trouxe para nossas terras cerca de quatro milhões de negros da África para sofrer, aqui, como escravos. A luta desses povos pela liberdade o impressionou. Índios guerreando contra portugueses e morrendo de tristeza e em decorrência de doenças dos brancos e negros cometendo o suicídio, matando seus senhores, queimando lavouras e fugindo. A história do Quilombo de Palmares e seu líder guerreiro, Zumbi, prendeu sua atenção e o fez entender um pouco a luta do dominado diante da força do dominador. O fez entender também a razão de a Constituição brasileira reconhecer que a terra é um direito ancestral dos indígenas e que, portanto, o Governo deve garanti-la em forma de reservas. Entendeu também o porquê deste direito ter sido estendido aos remanescentes dos quilombos, como forma de reparação ao  sofrimento imposto aos antepassados dos atuais quilombolas. Por fim, espantou-se que, em pleno século XXI, índios e negros ainda possam ser tungados pelos brancos, ao saber que uma maioria conservadora admitiu, quarta-feira, na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, proposta de emenda constitucional que tira do Executivo a prerrogativa de criar reservas indígenas e ambientais e reconhecer o direito dos quilombolas à terra. A PEC 215/2000 determina que  o Congresso Nacional avalize os atos do Executivo de demarcação de terras para fins de reservas indígenas ou ambientais ou de reconhecimento de quilombos. Isso quer dizer, na prática, que a PEC 125, apoiada com fervor pela bancada ruralista, maioria no Congresso, retira de índios e negros direitos garantidos depois de muito sofrimento e luta. Estes senhores de terras, sempre ávidos por aumentar suas fronteiras agrícolas, estão negando a nós, brancos, negros, indígenas e mestiços brasileiros, a esperança de avançarmos, cada vez mais, para um país em que natureza e diversidade cultural sejam um bem de todos. Esta é a lição que Leonardo Boff nos dá no belíssimo livro O casamento entre o céu e a terra, editado pela Salamandra, que nos serve com um pequeno painel da riqueza da cultura indígena no Brasil e do desrespeito com que foi tratada pelo branco-português-colonizador. Sobre os negros, temos A história dos escravos, de Isabel Lustosa, pela Companhia das Letrinhas, para apresentar a nossos filhos. No mais, só espero que nós, brasileiros do século XXI, possamos enfim mudar esta história de expropriação e exploração! O primeiro passo é pressionarmos o Congresso Nacional a derrotar em plenário esta maldita PEC 215 e, assim, darmos uma nova chance à história do Brasil.

quarta-feira, 28 de março de 2012

O alfabeto, segundo Millôr Fernandes


Em homenagem a Millôr Fernandes e a Antônio, com sua fome de letras, posto aqui duas maravilhas da obra deste grande jornalista, escritor, cartunista e humorista, que acaba de nos deixar.

Alfabeto Concreto
ABCdário
Esta composição gestaltiana levou anos, literalmente, para ser feita. Foi melhorando na medida em que o tempo - os anos, Deus meu! - foram passando. Publicada a primeira vez em 1958, na revista O Cruzeiro, foi reescrita para várias publicações. Não se consegue fazer esse tipo de coisa, numa sentada só. Tem que ser um pouco chinês.
O A é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o à craseado. O B é um l que se apaixonou pelo3. O b minúsculo é uma letra grávida. Ao C só lhe resta uma saída. O Ç cedilha, esse jamais tira a gravata. OD é um berimbau bíblico. O e minúsculo é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras letras. O F, com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gangster à espera de oportunidade. O f minúsculo é um poste antigo. A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O gminúsculo é uma serpente de faquir. O H é uma letra duplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo é um dinossauro. O I maiúsculo guarda, em seu porte de letra, um pouco do número I romano. O i minúsculo é um bilboquê. O J, com seu gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O j minúsculo é uma foca brincando com sua bolinha. Vê-se nitidamente; o K é uma letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o k minúsculo o K maiúsculo treina passo-de-ganso. O L maiúsculo parece um l que extraíram com raiz e tudo. Mas o lminúsculo não consegue disfarçar que é um número (1) romano espionando o número arábico. O M maiúsculo é um gráfico de uma firma instável. O m minúsculo é uma cadeia de montanhas. O N é um M perneta. No nminúsculo pode-se jogar críquete com a bolinha do o. O O maiúsculo boceja largamente diante da chatice das outras letras. O o minúsculo é um buraquinho no alfabeto. O p é um d plantando bananeira. Ou o q, vindo de volta. O Q maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando de costas ao espelho. O R ficou assim de tanto praticar halterofilismo. Sente-se que o s é um cifrão fracassado. O Smaiúsculo é um cisne orgulhoso. Na balança do T se faz jusTiça. O U é a ferradura do alfabeto, protegendo o galope das idéias. O u minúsculo é um n com as patinhas pro ar. O V é uma ponta de lança. O W são vês siameses. O X é uma encruzilhada. O Y é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços pra cima. O Z é o caminho mais curto entre dois bares. O zminúsculo é um s cubista.

segunda-feira, 26 de março de 2012

De letra em letra e de dedinhos em dedinhos

O mais novo objetivo de vida do Antônio é aprender a ler e a contar. Ele passa o dia todo contando os dedinhos das mãos, seja para quantificar o mundo, seja para registrar letras, ou melhor, sílabas. Distinguir letras de sílabas é o primeiro desafio que a língua lhe impõe e, ainda longe de vencê-lo, Antônio vai dividindo as palavras por seus sons e, de seu jeito, por suas sílabas. Em sua contagem, amigo, por exemplo, tem apenas três letras. E ai de quem tente o convencer do contrário. Convencer o Antônio de que ele está errado é um desafio maior do que aprender a ler e, por isso, o melhor que eu e o Cadoca temos a fazer neste momento é oferecer a eles brincadeiras com a língua para que, devagarzinho, vá distinguindo letras de sílabas, até que um dia, sei lá quando, ele possa ler sozinho. Por isso, fui remexer a estante a procura de livros que pudessem me ajudar a saciar a ânsia de letras e de números de meu caçula e descobri que perdi Palavras, muitas palavras, de Ruth Rocha, editada pela Melhoramentos, que serviu à curiosidade do Pedro na fase anterior à alfabetização. (Vale registrar que o Pedro nunca teve a ansiedade do Antônio em nada.) Voltando às letras, resolvi então procurar um novo livro e foi então que encontrei De letra em letra, de Bartolomeu Campos de Queirós, editado pela Moderna. Comprei, certa de que a delicadeza da prosa de Bartolomeu daria a meu pequeno um biscoito fino das letras ou sílabas, como ele queira. Não errei, o livro é lindo no texto de Bartô e nas tintas suaves de Elisabeth Teixeira. A maior brincadeira que ele tem nos permitido é mudar um pouquinho os versos de Bartô. Só um pouquinho para poder lê-los com os nomes dos colegas de sala do Antônio e, assim, permitir que ele relacione mais facilmente as palavras com suas letras. Assim, Alice cedeu lugar a Antônio, Daniel a Danilo, Mario a Miguel, Valério a Vinícius... De todos os versos, o que mais gosto é o da letra B. "Com B/ Beatriz borda bosque, balão, borboleta./ Beatriz brinca em bonitos bosques/ com brilhos de balões/ e belas borboletas brancas." De letra em letra, o Antônio vai tecendo o seu bordado. Enquanto não o termina, continua a contar seus dedinhos.

segunda-feira, 19 de março de 2012

A vida vista de diversos ângulos

Cada dia é mais bacana ler para o Antônio. Ele está perdendo a mania de perguntar tudo o que acontece na narrativa e de se certificar de um em um segundo quem é do bem e quem é do mal, podendo, assim, curtir mais as brincadeiras e viagens propostas em cada história. Nesta nova fase, o divertido Pato Coelho, de Amy Krouse Rosenthal, com ilustrações de Tom Lichtenheld, editado pela Cosac e Naify, saiu da estante, onde estava esquecido, desde que ele o rejeitou, para ser uma divertida opção de leitura noturna. Lemos o livro várias vezes e, assim, pudemos explorá-lo em todas os seus ângulos. O Antônio se divertiu tentando vencer o velho desafio de desvendar uma imagem que se confunde com um pato e um coelho. Pato/coelho, na versão de Amy e Tom, é, antes de tudo, um bacana exercício de percepção visual. O bico do pato pode muito bem ser as orelhas do coelho e vice-versa, dependendo apenas com qual sugestão se esteja vendo a imagem. Ao fim, os autores embaralham as cartas, fazendo com que os dois personagens ocultos do livro - que debatem sobre o pato e o coelho - mudem de ideia e se vejam diante de uma nova imagem desafio. Afinal, perceber que a vida pode ser vista de diversos ângulos é o segredo dessa história.

quarta-feira, 7 de março de 2012

O lobo, a raposa e a lei do mais forte

Contos de Grimm, com seleção e tradução de Ana Maria Machado, editado pela Salamandra, estava há algum tempo na minha lista de desejos. O livro é caro, já que são dois volumes, mas exerceu sobre mim imediata atração. Além da promessa de bom texto, pela assinatura de Ana Maria Machado, e de boas histórias, pela fonte dos Grimm, os livros são ideais para quem quer apresentar o mundo maravilhoso dos contos de fadas para as crianças. A linguagem é adequada e as ilustrações de Jean Claude R. Alphen, no primeiro volume, e Cris Eich, no segundo, são lindas e colaboram, cada um com seu estilo, para compor o clima mágico das histórias. Com todos estes atributos, resolvi comprar os livros e os apresentar para meus filhos. Na verdade, minha intenção primeira era ler para o Antônio, já este ano sua escola vai explorar a diversidade do universo dos contos maravilhosos, mas o Pedro se inscreveu logo na fila, prestando uma baita atenção na leitura de ontem à noite. Escolhi para a estreia o conto O lobo e a raposa, contando com o carisma dos dois animais para prender de imediato a atenção do Antônio. Deu certo! Logo no início do conto, Ana Maria, apresenta a raposa como explorada pelo lobo, que a escraviza na ânsia de saciar sua insaciável fome. A ação que se segue mostra a raposa explorada por um insensível lobo, até ela usar de um artifício para livrar-se dele, induzindo-o à morte. Foi quando vi o interesse do Pedro. "O que aconteceu mesmo com o lobo?". Repeti o fim em que o lobo, algoz da raposa, é enganado por sua vítima e morto a pauladas por um enraivecido fazendeiro. O Pedro ficou revoltado com a atitude da raposa. Eu tentei explicar que a raposa tinha enganado o lobo para se livrar de uma terrível exploração e de nada adiantou. "Os dois estão errados", disse convicto. Confesso que torci pela raposa. Os explorados sempre têm minha simpatia. Já o Pedro ainda não tem condições de entender  que, quando vale a lei do mais forte, a única ética é a da sobrevivência. Fugir dessa ética é  possível apenas quando temos mecanismos de defesa contra a força desproporcional de nossos exploradores. O lobo e a raposa das histórias tradicionais são anteriores a uma ética pautada pelo bem e o mal, que, no caso do conto em questão, reprovaria tanto a vítima, quanto o algoz. Acho que não fui capaz de explicar isso para ele. Mas da próxima vez, tento de novo. Então, que a Ana Maria nos conte outra!