quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O espanto diante da morte e a necessidade de encará-la

Quando decidi criar esse blog, em 2008, tínhamos duas gatas em casa. A minha e a do Cadoca. Isolda e Guin. Elas não se davam, ou melhor se odiavam, evitando-se todo o dia. A convivência entre as duas fora forçada por conta da nossa união, que nos fez juntar não apenas os trapos, mas, sobretudo, os gatos. Tristão, companheiro da Isolda, desde o nascimento, já havia partido quando criei o Gato de Sofá, inspirada na experiência de ler com gatos passeando seus rabos na frente dos livros ou deitados em meu colo, no sofá. Era um gato branco, gordo, com uma alma de Garfield do bem. Isolda era uma gata preta, magrinha e serelepe, cheia de personalidade. Gueen era uma dama. Uma siamesa petit, toda meiga e mimada, que se ressentiu quase de morte com a invasão de sua casa. Tristão, nos primeiros dias, a assediou e se exibiu como pode, marcando território - que ignorou ser o lar do novo casal - com seu xixi fedorento. Isolda, certamente com ciúmes da atenção de seu companheiro para aquelazinha, tomou-se de uma antipatia sem fim pela Gueen, que também não a apreciava. Tristão se foi ainda jovem, vítima de uma insuficiência renal, cumprindo o destino trágico do nome que escolhi por estar encantada com aquela poderosa história de amor. Ele partiu e as duas ficaram para a quase eternidade, sem nunca se reconciliar. Passaram anos pela casa ignorando uma a outra, até que a Gueen também nos deixou, logo após completar duas décadas. Foi a vez da Isolda reinar sozinha, em meu quartinho de trabalho, onde ocupou por anos a única poltrona do ambiente, até que, semana passada, também com duas décadas de vida, partiu. A casa em que, nos últimos 20 anos, o ar misturava-se com com gatos, fazendo-se sentir na fricção com a nossa perna, de repente ficou oca. O ar agora é rarefeito e não opõe resistência ao nosso caminhar. O sofá está vazio, o cantinho perto do tanque, onde foi por anos o banheiro e o refeitório dos felinos, ficou livre e nós nos deparamos mais uma vez com a morte. Apesar de anunciada pela idade da vítima, a morte sempre nos causa espanto. A tristeza se abateu de um jeito peculiar em cada um de nós. Eu, que passava a maior parte de meu tempo, velando o sono da Isolda, mesmo sem me dar conta disso, intuí a morte e, no meio da semana, comentei com o Pedro sobre o estado da gata. Meu filho veio até meu quartinho de trabalho, aonde ela passava quase todas as suas horas, e aqui ficou pelo tempo que desejou. A vida seguiu e ele, com o vigor de um adolescente, correu atrás dela. Os dias se passaram e a morte se anunciava cada vez mais perto. Assustada e desejosa em dar uma boa hora para a minha gatinha, companheira de tantos anos, decidi levá-la à clínica veterinária que sempre a atendeu. Mas antes avisei ao Antônio sobre a possibilidade de ela não voltar para casa. Dei corpo em meu aviso ao temor que me assombrava há tempos de um dos meus filhos a encontrarem morta pela casa. Meu pequeno, que nunca esteve diante da morte, veio ao quartinho e repetiu o ritual de despedida feito dias antes pelo irmão. Depois de alguns minutos, entrou na sala com os olhos e o nariz congestionados de tanto chorar. Sentei-o em meu colo, do jeito que ainda é possível, e, com a ajuda do Cadoca, expliquei para ele que o fim é um dado da vida, que não temos como fugir disso e que precismos aceitar as despedidas, mesmo assumindo que isso nos entristece muito. Suas lágrimas escorriam e, olhando aquele rostinho enevoado pela tristeza, pensei em como temos que reaprender a conviver com a morte. Falei para ele, com os ouvidos voltados para dentro de mim, que diante da morte, o único alento é a vida que partilhamos com quem se vai. Meu pequeno, que me ouviu com os olhos ainda embargados, me perguntou em que dia ela morreria. "Não sei, filho, mas não vai demorar", disse, francamente. Naquela mesma noite, ela nos deixou e à vida. Ela se foi, como o esperado, sem grandes sofrimentos. Fiquei triste de ela não estar conosco e, ao mesmo tempo, aliviada por ter sido atendida nessa hora derradeira. Mas, novamente, me perguntei porque nós perdemos a capacidade de aceitar a morte. Havia pedido à veterinária que a atendeu, na emergência, que não fizesse nenhum procedimento para tentar salvá-la. Eu sabia que estava morrendo e queria apenas que não sofresse. A notícia da morte me chegou junto com o prontuário da internação. A veterinária, formada, assim como os médicos, para combater a morte, me explicou que ela morrera após uma tentativa de normalizar sua frequência respiratória, com uma pulsão de líquido que estava em seu pulmão. Não deu certo. Logo após, ela se foi. Saber do procedimento me entristeceu menos por ter ele ter contrariado meu pedido e mais por eu não ver vantagem nele. Para que realizá-lo? Para mantê-la viva aos trancos e barrancos por mais algumas horas ou dias? Não teria sido melhor dar um analgésico forte para ela não sentir dor e deixá-la partir em paz? Afinal, a gata tinha quase 21 anos e, me colocando nesse lugar, me veio a certeza de que se chegar aos 100, não quero médicos fazendo procedimentos de reanimação quando minha morte chegar. Temos que reaprender a morrer. Não há morte mais digna do que a trazida pela velhice. Uma morte do fim do caminho, que não nos rouba nada e, apenas, abre caminho para outros. Sei que os médicos e os veterinários hoje são formados para lutar contra a morte, mas, em algumas situações, como a da Isolda, acho que fazer um pacto com ela seria mais generoso. Ela teria morrido do mesmo jeito, mas sem a angústia de ter que lutar pela vida aos quase 21 anos. Não foi assim. Eu, que a vi nascer na casa da minha mãe e me despedi dela aos poucos, me agarrei à certeza de que minha gata teve uma vida feliz ao nosso lado e fiquei aliviado por ter podido conversar com meus filhos sobre a morte. Falar sobre a morte é uma maneira de digeri-la e, assim, aceitá-la. O silêncio acerca dela, ao contrário do que nossa sociedade nos faz crer, não a afasta de nós, apenas dá a ela o poder de nos assombrar. E, nós aqui nesse silêncio pós-morte, nos apegamos à certeza de que a Isolda foi e nos fez feliz. 

PS: Essa foto não faz jus à beleza da Isolda. Mas foi a que achei agora, na pressa. Depois, coloco outra mais bacana.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Querido diário

O Antônio deu para ler sozinho, sem a minha presença ou ajuda. Entre os livros que escolheu para essa aventura está O diário de um banana, de Jeff Kinney, que o atrai por ser coisa de menino, ao mesmo tempo que o desagrada por Greg, o protagonista, estar sempre sendo sacaneado pelo irmão mais velho, Rodrick. Apesar de ele e o Pedro se darem muito melhor do que os irmãos do livro, muitas vezes se parecem com eles, como dá para ver no causo que conto a seguir.

Antônio me pediu um diário. Com cadeado e tudo para guardar a sete chaves seus melhores e maiores segredos.
Fomos à papelaria, fuçamos as estantes e só encontramos diários para meninas. Cor-de-rosa, poderoso com caixinhas de música, decorado com corações, bonequinhas de luxo ou princesas, enfim, nada que lembrasse o universo de um menino apaixonado por futebol e louco para treinar sua letra cursiva e, assim, chegar abafando no terceiro ano.
- Ah, mãe, então não quero – falou, desanimado.
- Filho, a gente pode comprar um caderno maneiro e ele ser o seu diário.
- Mas, assim, todo mundo vai poder ler meu diário - replicou. 
- Não. A gente compra o caderno e um envelope com fecho eclair para você guarda-lo. 
- Então, tá – assentiu, feliz.
Catamos na papelaria um caderno – o escolhido foi um do UFC, mais menino impossível -, um lápis do Brasil, um apontador e o envelope preto com fecho, que escondia tudo em seu interior. Ele saiu felizão da papelaria, com o diário debaixo do braço, ansioso pelo momento que poderia ficar sozinho com seus segredos.
Chegamos em casa e ele pôs-se a escrever. Escreveu, escreveu, escreveu. Apagou, apagou, apagou. Escreveu mais e mais e escolheu o Xico, seu comparsa de quase todas as horas, para compartilhar seus segredos e depois, com toda a pompa que o momento merecia, guardou o diário. Não a sete chaves, mas escondidinho, num canto do armário.
Os dias se passaram, o diário foi sendo deixado de lado, até que neste carnaval, voltou à ativa. Renato, o primo adulto e desavisado do caráter confidencial do caderno, o abriu e se surpreendeu com o conteúdo. Lista dos amigos, lista negra, lista da família, etc. Mas o melhor viria na lista dos melhores amigos, em que só três sujeitos figuravam: “meu irmão, meu primo e meu cocô.” 
Isso mesmo, “meu cocô.”
- Mãe, olha o que o Antônio escreveu no diário dele – Pedro veio correndo delatar – Ele disse que o cocô dele é um de seus melhores amigos – contou, rindo, com cara de irmão mais velho, diante das maluquices do mais novo. 
E não é que o cocô do menino estava mesmo lá, entre seus melhores amigos. Todos se puseram a indagar a razão de escolha tão esdrúxula. 
- Será que o Antônio se sente aliviado quando se livra do cocô e por isso ele é um de seus melhores amigos, ou se ele gosta tanto dele que o guarda para quando o carnaval chegar – perguntava, rindo, o irmão. 
 
Eu fiquei de fato intrigada com o que poderia ter feito meu menino eleger o cocô, tão desprezado pela humanidade, como um de seus amigões e cheguei a pensar que essa resposta fazia parte dos mistérios da vida. Mas não. Era apenas mais uma daquelas maldades perpetradas pelo irmão mais velho, contra o mais novo.
Então aos fatos. O Pedro e o Renato resolveram tirar uma onda com a cara do Antônio e o fizeram incluir, em seu próprio diário, o cocô na lista de seus melhores amigos. Cocô inscrito, vieram a mim, mãe crédula e ansiosa por novidades, mostrar a lista dos amigões do pequeno. Minha surpresa não foi surpresa para os dois grandões, que se divertiram a valer com a bem-sucedida maldade contra o menor. Tudo bem, não fosse a mãe ter contado para todo mundo sobre as estranhas amizades do filho caçula.
- Mãe, eles me obrigaram a escrever o cocô na lista dos meus melhores amigos – contou-me o Antônio, com os olhos úmidos e um tom entre o humilhado e o revoltado, ao saber que eu divertia meus amigos com a história do cocô amigão.
A confissão que deixou a história a nu, me fez pensar em como nós, adultos, não entendemos nada de cocô, de crianças e de melhores amigos, além de me fazer lembrar da dor e da delícia de se ter um irmão mais velho.