Tenho muitas lembranças da minha avó materna, que, mesmo morta, ainda
faz parte da minha vida. Ela não era uma mulher de fácil leitura. Cresceu e
viveu em um pequeno mundo e, nele, se movia obedientemente como se não lhe
impusessem limites. Exibia uma beleza discreta, a permitida em seu meio social,
e deixava transparecer uma alegria quase envergonhada e alguma tristeza. A
maior delas, com certeza, a morte prematura do filho, com 21 anos. Um filho que
não conheci e, por isso, nunca chegou a ser meu tio. Dele tenho apenas a
lembrança do retrato na mesa de cabeceira da minha avó.
Um retrato de um jovem bonito, sorridente, segurando a rédea de um
cavalo de corrida vencedor, como todos esperavam que ele fosse. Um retrato do
qual me lembro já esmaecido, desbotado, lavado por uma enchente de Blumenau que
quase levou definitivamente de minha avó o filho tão amado e perdido. Naquela
foto em sua mesa de cabeceira, aquele rapaz viveu até o último minuto da vida de minha avó. Ela
se foi em 1993, na noite em que Madona sacudia o Maracanã. Eu estava lá e, ao
chegar em casa, soube de minha avó. Hoje, a tenho em minha estante, em duas
poses sorridentes. Uma mulher ainda jovem, bonita, de outro tempo a olhar por
mim.
Assim são os retratos para mim. Objetos quase sagrados que mantêm viva a
aura de quem se foi, de quem amamos, como se fosse possível dar forma à memória.
Perdê-los seria materializar a ameaça sempre viva na cor desbotada do retrato
do filho de minha avó. Seria ainda mais. Seria ver morrer mais uma vez aqueles que
já nos deixaram. Seria me ver apartada de minha memória, sozinha, sem
materialidade para a minha história. É dessa ameaça de separação forçada entre nós
e a memória que lembro daqueles dias em que, no Jornal do Brasil, me dediquei ao
drama dos moradores do Palace II, o prédio construído pelo então deputado
Sergio Naya na Barra da Tijuca, que desabou em um domingo de
carnaval de 1998, matando oito pessoas e deixando centenas de desabrigados.
Era madrugada do dia 22 de fevereiro de 1998 e eu estava na Avenida
Marquês de Sapucaí cobrindo o carnaval. Não me lembro de a notícia me ter
chegado em meio à folia. De manhã, de volta à redação, soube do desabamento. Não havia ainda informação suficiente para sabermos da dimensão da tragédia. Era mais um drama em meio a tantos que
cobríamos. Todos os recursos do jornal que não estavam empenhados no carnaval
da Sapucaí foram desviados para a cobertura jornalística sobre o Palace II. Eu só cheguei a ela na quinta-feira, depois do anúncio das campeãs.
Eram muitas histórias tristes. As mortes, os desabrigados, o prejuízo da
maioria que ainda não havia quitado o financiamento do prédio habitado há
apenas dois anos. Tudo concorria para aquela ser uma das maiores tragédias a
se abater sobre a classe média carioca. Não me lembro bem qual foi a minha
participação na cobertura daqueles primeiros dias, o que me marcou foi a noite
que antecedeu à implosão do prédio, ordenada pela prefeitura. O prédio veio
abaixo de vez em um domingo, dia 28 de fevereiro, após o desfile das campeãs.
Dessa vez, eu não estava na avenida. Passei a noite, com um farnel e
alguns colegas, em frente ao prédio que ruiria assim que o dia amanhecesse. Fui
pra rua sabendo que minha pauta podia não dar em nada, que eu podia voltar de
mãos vazias para a redação. Meu chefe, o Zé Luiz Alcântara, de quem fui
amiga até o fim, me chamou em seu aquário e me pediu que passasse a
madrugada em frente ao prédio, para fazer uma matéria caso algum
morador tentasse entrar nos escombros, antes da implosão, para resgatar documentos,
fotos ou memórias. A tristeza dos moradores com a perda de suas referências
materiais era tamanha, que tínhamos medo deles desafiarem a morte em busca de algum resquício da vida que ficara para trás.
Naqueles dias, mulheres não davam plantão de madrugada em jornais. Os
perigos da noite ficavam reservados aos homens. Zé Luiz, amigo querido, me deu a possibilidade
de recusar a tarefa, mas eu topei. A vontade de estar lá era maior do que o
desconforto e os possíveis riscos de passar a madrugada em uma rua deserta da
Barra da Tijuca. Foram horas de vigília. Ao contrário do que temíamos, ninguém
se aventurou por lá. Nem na rua, nem nos escombros. Havia só seguranças para
impedir a entrada na área impedida e uns poucos repórteres.
Passei a noite imaginando o que estaria debaixo do amontoado de concreto que víamos de longe. Os móveis de uma avó já falecida, o anel que passou de mãe para filha e para neta, a abotoadura que veio na camisa do avô, aquele quadro do amigo talentoso, o faqueiro de família,
os cristais ganhos no casamento, a caderneta de escola, a carta do primeiro namorado, a flor desidratada entre as folhas do diário de adolescente, o primeiro cacho de cabelo do filho já adulto, a roupinha usada no batizado do primogênito, a foto de bebê e da formatura, o livro favorito,
a coleção de discos, a carteira de trabalho, o caderno de poesias nunca publicadas.
Passei a noite imaginando a dor de perder o que nos faz
lembrar, pensando na foto do filho de minha avó, em sua cabeceira, na dor que
seria para ela perdê-lo novamente.
OBS: Peço desculpas por não ter falado de um livro para crianças, nem dos meus filhos. Quis olhar para trás, falar da memória. Da foto na cabeceira de minha avó. Das perdas de quem viu sua casa ruir na tragédia do Palace II, que completou ontem 20 anos.
3 comentários:
belo e sensível texto.
Mais um grande texto, Luciana. A foto de sua avó materna, tão parecida com uma que guardo de minha mãe, foi o que me puxou para a leitura. Depois, a inesperada mudança de rumo no texto me transportou para outras lembranças que também trago dentro de mim - a vida de repórter, a busca ansiosa pela notícia que nem sempre se oferece como gostaríamos. E, finalmente, a pergunta que tantas vezes me fiz, nas muitas mudanças pelo mundo: de todas as coisas materiais que acumulei ao longo da vida, qual a que mais me faria falta, se de repente a perdesse em um desmoronamento inesperado? Na verdade, como você bem observou, existem poucas coisas tão importantes na vida como uma lembrança afetiva bem guardada junto à nossa cabeceira, do jeito que a foto do seu tio-que-nunca-chegou-a-ser-tio era para a sua avó. Gostei muito deste texto. Agora vou voltar àquele sofá do seu blog, pedir ao gato para me ceder um lugarzinho, e continuar minha leitura sobre os livros infantis.
Oi, Monica, é um prazer te receber aqui. Venha sempre. Vou retribuir a visita.
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