- Thomas, chega! Sai da sala! Espera o tempo dessa aula
acabar na coordenação.
Eu ia. De a cabeça baixa, como esperam as professoras que
seus alunos punidos saiam de sala. Atrás de mim, ouvia aquele zum-zum-zum que
as crianças obedientes fazem ao ver um colega ser expulso da aula, e, assim,
que chegava no pátio, respirava fundo aquele ar farto e livre, levantava a
cabeça e me dirigia à coordenação.
- Oi, Mercedes – dizia ao chegar, agora com a cabeça baixa -,
a Cris mandou eu sair de sala.
- De novo, Thomas – ela me perguntava, sem alterar a voz - Senta
aqui, o que aconteceu?
Eu sentava. Era uma sala pequena e acolhedora, em que havia duas
escrivaninhas – uma grande, onde ela trabalhava, e uma menor, em que se
acomodava sua auxiliar –, duas cadeiras em frente à mesa da coordenadora para receber
pais em visita à escola e uma pequena poltrona no canto. Nesta poltrona,
Mercedes descansava um pouco depois do almoço e recebia os alunos expulsos de
sala. Eu era um dos mais assíduos em seu gabinete e, por isso, ainda sou capaz
de lembrar da caneca do Museu Miró que ela usava como porta-lápis, do bloco
grande de folhas brancas e sempre rabiscadas permanentemente aberto sobre sua mesa,
do aparador ao lado que servia de estante e de pouso para cadernos e trabalhos
de escola, do mural no centro da parede em que prendia desenhos de alunos,
fotos, cartões e outras lembranças amarelecidas que serviam como prova de seu
tempo no magistério, da cortina de palinha que a separava do mundo lá fora e da
luz quente que dava um ar aconchegante ao ambiente, que me lembrava a casa da
minha avó.
- Eu estava conversando e, quando a Cris me chamou a atenção,
eu ri – respondia, agora com a voz acanhada que os alunos expulsos de sala usam
para comover a coordenadora.
Meu mal era o riso frouxo. Eu gostava da minha professora.
Ela era bonita e carinhosa com os alunos, mas, como éramos muitos e barulhentos,
levávamos bronca várias vezes ao dia. Na maioria delas, eu calava, mas quando era
o alvo do sermão, não tinha jeito, não me continha.
- Thoooomas – Cris me chamava a atenção, com aquele tom prolongado
de quem está querendo dar uma saída à sua presa.
Eu respondia com um monossílabo qualquer e ela repetia.
- Thoooomas...
Eu continuava olhando para ela, que repetia mais uma vez.
Era quando me dava uma louca, e, com a voz mais afetada que eu pudesse fazer,
respondia em tom de galhofa.
- Que-que-é-isso-mulé?!
Todo mundo ria. Era a hora dela perder a paciência e me
mandar para fora.
- Thomas, chega! Sai da sala! Espera o tempo dessa aula
acabar na coordenação.
Eu ia, como já disse, de cabeça baixa para mostrar algum
respeito por ela e, principalmente, para esconder o riso aprisionado em meus lábios
apertados, que só relaxavam quando eu encontrava aquele ar livre e puro do pátio
da escola. Ao riso inicial dos meus amigos se sucedia um zum-zum-zum que se
formava atrás de mim e me enchia de um orgulho infantil, quase narcísico, que
alimentava meu ego que Cris julgava machucado com o castigo. Mas o que eu
mais gostava naqueles dias não era o que ficava para trás, era o que estava por
vir na sala da coordenação. Depois de uma breve conversa, Mercedes, que, como
já disse, nunca alterava a voz, passava a mão macia e quente sobre meus cabelos
e, com uma voz de quem está oferecendo o perdão, a estendia em minha direção
para mostrar um pote cheio de biscoitos. Cada dia era um biscoite diferente. Os
que eu mais gostava eram os de chocolate. Mais raros eram os doces, mas nesses
dias eu era o menino mais feliz da escola e desconfiava poder ser até do
mundo. Brigadeiro era o mais ansiado por mim. Acho que nunca mais comi
brigadeiro igual. O gosto de chocolate era bem forte, suavizando o travo do açúcar,
e era acentuado pela cobertura com pó de cacau. Eu amava sentir aquele doce se grudando
a meu céu da boca, à espera da saliva que o ia derreter aos poucos, prolongando
aquele delicioso sabor.
Saboreando as pequenas delícias oferecidas pela Mercedes,
esperava o fim do castigo. Ele quase sempre, se eu tivesse feito a coisa
certa, terminava com o som do sinal do recreio. Eu, como um bom menino, seria
melhor dizer típico, saltava da poltrona da coordenação e saía correndo para o
pátio, tão rápido que nem sei se dava tempo de meu tchau alcançar os ouvidos da Mercedes.
Era uma delícia chegar no recreio sem aquela urgência imposta pela fome que via
em meus amigos. Com a barriga tranquilizada pelos quitutes da coordenação, não precisava
correr para a fila da cantina, nem tão pouco ir à minha sala para pegar a
lancheira. Meu lanche podia esperar pelo fim do recreio ou quem sabe, se a
brincadeira estivesse muito boa, pela saída para ser saboreado na viagem de
volta para casa, feita na van da Mari. A Mari não deixava que comêssemos no
carro para não atrair baratas, mas, como seu coração era grande, fingia não ver
quem discreta e cuidadosamente abria a lancheira para comer aquele biscoito ou
banana que, porventura, tivesse sobrado do lanche. O trânsito, ela sabia,
aumentava e muito nosso apetite, muitas vezes ignorado na escola em favor das
brincadeiras do pátio.
A fome era uma das razões de eu, no quinto ano, ter sido
expulso tantas vezes de sala. Depois de uma meia dúzia de expulsões, percebi as
benesses de se estar na coordenação e resolvi coordenar minhas ações com o
relógio da fome. Assim, criei uma rotina em que meus arroubos de menino malcriado,
salvo alguns imprevistos que eu não conseguia contornar, eram quase sempre no
último tempo antes do recreio. Naquela aula em que todos, alunos e professores,
estão com o estômago colado e os raros silêncios são rompidos por roncos de
barrigas angustiadas. Quando a minha dava seu primeiro sinal, era hora de eu incrementar
as conversas e mostrar toda a minha graça. A Cris e a Mercedes nunca
perceberam a coincidência ou, quem sabe, preferiam ignorá-la. Assim, segui todo
o quinto ano merendando na coordenação, o que me deixava livre para brincar no
recreio. Tenho certeza de que a Mercedes e até mesmo a Cris sabiam que eu só ia para a escola para comer e brincar e, no
fundo, aprovavam minha motivação. Afinal, para que serve a escola para um
menino de 10 anos?
*Fica aqui, com essa crônica que escrevi inspirada na conversa do almoço de hoje com meus filhos, minha homenagem ao Dia dos Professores. A tirinha do Calvin é, como sempre, uma delícia. 
