terça-feira, 28 de agosto de 2018

A ida e a volta de uma aventura transatlântica

Visitamos Óbidos, no dia 11 de julho, poucos dias depois de chegarmos a Portugal. Uma cidade linda, mas, como um cenário, sem alma. De início, ficamos impressionados por sua muralha medieval e suas casas acanhadas se amontoando em vielas e ladeiras. Todas brancas, coloridas apenas pelo azul e amarelo que nos acostumamos a ver em nossa arquitetura colonial, e ostentando flores nas janelas que compõem um bucólico cenário. Uma impressão que foi se esvaindo à medida em que avançávamos por seus desvios. As casas, outrora habitadas pelo povo da cidade, servem hoje a lojinhas que vendem quinquilharias indianas, lembranças industrializadas que se pode achar em qualquer canto do país, miniaturas de cavaleiros medievais, comida e ginga, a aguardente típica da cidade. Para completar, a cidade é lotada de turistas que andam de cá para lá sem qualquer objetivo a não ser estar dentro das muralhas de Óbidos. Não há muito para ver, além das casas e vielas, que, lotadas, não nos permitem nenhuma experiência sublime. O Pedro me pergunta se as casas são também moradia. Digo que sim. Mas, logo, sou desmentida pela moça que nos atende na Fundação José Saramago, instalada em típica casa do lugar. Ela nos explica que a grande maioria dos moradores deixou as muralhas para se instalar na cidade nova, como ela, uma jovem que pouco sabe da história de Saramago. Fazemos uma pausa na fundação, vemos as fotos expostas, olhamos a estante em que há as edições portuguesas dos livros do autor e algumas traduções, os meninos se divertem correndo pelas escadas, aproveitamos o banheiro e saímos. De volta à rua e à pequena multidão que se aglomera por lá, seguimos para o alto da vila, onde fica a famosa livraria instalada em uma igreja. A inadequação do lugar a seu uso é clara e as estantes se ajeitam como podem no lugar onde antes haviam bancos para os fieis. Confesso que, não fosse o inusitado da coisa, não teria gostado da livraria. Mas só entendemos o uso exótico do templo, em Évora, onde um católico nos informou que há muitas igrejas abandonas em Portugal, por causa da crise de vocações religiosas. De novo na rua, nos reunimos e decidimos voltar para Lisboa, em busca de um restaurante sem as moscas que infestam Óbidos, não sem antes dar uma paradinha para comprar um queijo de cabra, parada que rendeu uma rica conversa transatlântica.
- Mãe, os brasileiros que vem morar em Portugal têm que aprender português - Antônio perguntou, interrompendo minha negociação com o dono dos queijos.
- Não, Antônio, falamos a mesma língua que eles. A diferença que você está percebendo é apenas o sotaque, algumas palavras e expressões. Mas isso não impede de nos entendermos - expliquei, rindo de sua lógica de menino.
- Vocês falam português, como nós - emendou o simpático senhor que nos atendia -, afinal, fomos os primeiros a chegar ao Brasil.
- Não foram, não - eu disse, sem nenhum traço de raiva na voz -, os índios é que foram os primeiros.
- Mas fomos nós quem descobrimos o Brasil - replicou o português, meio desconcertado com a minha negativa.
- Não foram, não - repeti -, vocês não descobriram o Brasil, vocês o colonizaram - eu disse, com tamanha convicção que o homem preferiu calar-se.
O Antônio que, sem querer, causara o constrangimento, aproximou-se do pai e do irmão para contar o diálogo e, rindo, me acusar de querer arrumar confusão com o simpático português. O que ele não contava era com a reação do Pedro, que ficou do meu lado com entusiasmo.
- Minha mãe tá certa. Eles são colonizadores, não são descobridores de nada - disse, em tom inflamado.
A indignação do Pedro o guiou por Portugal e o Sul da Espanha e nos fez pensar sobre nossas relações com os colonizadores e nossos laços com a Europa, a matriz do Ocidente cristão do qual fazemos parte, mesmo que com pé dentro e outro fora. Questões que estiveram presentes em quase todos os lugares que visitamos, desde as igrejas banhadas a ouro e prata latino-americanos, até os sítios arqueológicos que mostram que a história de nossos colorizadores foi marcada por uma longa e sangrenta luta pelo território. Questões que eclodiram nos comentários que o Pedro e o Antônio deixaram no livro de visitas do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. O primeiro denunciou o sofrimento dos povos nativos, no Brasil português, e, o segundo, a superioridade de Pelé sobre Euzébio. Mas há quem, como Lúcia Fidalgo e a ilustradora Andréa Resende, faça isso de forma poética, nos reaproximando daquele povo que arriscou-se no mar em busca de novos territórios. "Pedro, menino navegador", que infelizmente saiu de catálogo com o fechamento da Manati Editora, é um belo exemplo de como apresentar para crianças uma questão tão complexa. Não nos deixa esquecer a aventura épica que foi as navegações e, ao mesmo tempo, a violência da colonização. Vale a pena procurá-lo em sebos. Deixo, aqui, um pouco de Fernando Pessoa, como homenagem aos portugueses que lá nos acolheram com carinho, 500 anos depois de darem com os costados em nossas terras.

 MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


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