quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O olhar mágico de Lúcia Hiratsuka sobre o mundo

As vezes eu fecho os olhos para tentar imaginar o sítio onde Lúcia Hiratsuka cresceu, em Duartina, no interior de São Paulo. Não consigo. O que me vem aos olhos é Tebas, com o chão úmido de orvalho, em que a terra se insinua pelas falhas da grama e onde estão gravadas minhas pegadas, o rastro de um tempo para mim perdido. É nessa Tebas, quase mil quilômetros distante de Duartina, que inscrevo as rememorações de Lúcia, em Chão de peixes, editado pela Zahar, com o capricho que a autora merece. É lá que experimento o tempo vagaroso da criança que consegue enxergar, em um breve instante, o capim reverenciando o grilo atleta que ocupa uma das folhas brancas do novo livro de Lúcia. Um chão que, como diz o nome, é fluido, permissivo ao olhar de quem vê no que não é o que poderia ser. Permissivo à interferência da criança, capaz de caminhar por uma senda, como imagino Deus tenha caminhado no dia da criação. Permissivo à vontade da artista que modela esse novo mundo de acordo com sua sensibilidade, feita matéria em poeminhas que, como os haicais, falam da natureza. Poeminhas ilustrados com as pinceladas da secular técnica sumiê, presente em outros de seus trabalhos. Chão de peixes é mais que um livro, é um convite para uma outra relação com o tempo e as coisas da vida, um convite para sentarmos com nossas crianças apenas para ver as coisas do mundo em movimento, um movimento que, se aceito, pode nos levar a experimentar novos prazeres. É a possibilidade de nos fazer encontrar no chão dessa memória - a folha branca do livro aberta à imaginação - a criança, que, como nos ensinou Walter Benjamin, busca semelhanças no que vê e, por isso, guarda um olhar promissor para com as coisas prosaicas da vida, que nós adultos não conseguimos mais ver valor. É magia que Lúcia nos oferece em seu livro. A nós, resta apenas agradecer.

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