quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O Ceat é um lugar para aterrar e para recriar o comum

Esse painel está no salão principal do castelo do Ceat, escola da vida dos meus filhos. O Pedro entrou lá com cinco anos e hoje é um homem bacana que leva pra vida o que viveu e aprendeu por lá. Aprendeu muito e não foi só matemática e português. Foi muito mais. Foi tanto que a festa de ex-alunos fez seu coração pular de alegria por quase uma semana. O Antônio chegou lá, dando os primeiros passos, com um ano e três meses e vai começar sua despedida do Ceat neste novo ano, antevendo, como me disse outro dia, a saudade que sentirá dessa escola tão acolhedora e importante na vida da nossa família. Saudade que não o impede de ansiar pelo futuro, que já chegou para o irmão. Não há como não amar o Ceat, essa escola que não tem medo de fazer a crítica ao que está aí ameaçando nossa paz e a existência do planeta, não apenas no discurso, mas no dia a dia de uma convivência que rema contra a maré da educação para o sucesso que tanto faz sofrer. Lá, ainda bem, se educa gente e não líderes. Uma escola que nos enche de esperança de que a dureza da vida que o capitalismo nos lega não será capaz de matar em nós o desejo de uma existência melhor no planeta, de um lugar para aterrar, como diria Bruno Latour, e recriar o comum. Esse ano é o último do Ceat em nossas vidas, mas tenho certeza de que o castelo será sempre habitado por gente feliz e inquieta, como as crianças desse mural que me enche de nostalgia. ❤️

sábado, 11 de setembro de 2021

Eu e o menino da janela, outra vez

Acordei tarde, embalada pelo friozinho que chegou na cidade ontem à noite, e fui cuidar dos meus temperinhos na janela. Do outro lado, distante, estava o menino que grita pela janela. Assim que me viu, gritou: "oi!". Eu olhei em sua direção, surpresa (foi a primeira vez que ele se dirigiu a mim de início). Eu, constrangida com a deferência que me soou como homenagem, gritei de volta: "Oi!" Ele respondeu, "tá frio". Eu de cá, lembrei que hoje é sábado e que muita gente ainda devia estar dormindo, e gritei acanhada: "tá frio". Acenei. O menino acenou de volta. Uma mulher ainda jovem, que parecia ser sua mãe, apareceu na janela, como a me dizer que olha pelo filho. Acenou para mim. Eu retribuí o aceno. O menino, gritou de novo -"tá frio", em uma nova tentativa de puxar assunto. Eu de cá, ainda envergonhada, sem conseguir me despir da minha madureza, sepultei a conversa, com um lacônico "sim". Ele não desistiu, e continuou na janela a me olhar, talvez estranhando a mulher que costuma lhe retribuir os gritos guturais. Talvez tenha pensado que eu ainda não sei falar, que só sei gritar e repetir o que ouço, como os bebês. Será que ele tem um irmãozinho que faz isso, o imita em tudo? Não sei, mas sua mirada insistente me fez perceber que não sou assim tão livre, que não sei mais gritar pela janela como antes. Me vi incomodada. Olhei pro lado e vi as janelas dos vizinhos próximas, pensei "hoje é sábado", "ainda é cedo", "tem muita gente dormindo" e me calei. Me calei porque hoje é sábado, pensei, se fosse um dia de semana eu gritaria, conversaria à distância com o menino da janela. Acenei de novo. O menino mais uma vez retribuiu. De cá, pensei em quantas vezes podia acenar de novo, silenciosamente, protegida pelos meus pés de manjericão e alecrim, sem parecer estranha para o menino. Evitando a resposta, deixei a janela, mas não sem antes acenar mais uma vez para o menino. 

domingo, 18 de julho de 2021

O grito do menino para a menina que um dia eu fui

No prédio em frente ao meu, há um menino que com frequência se diverte gritando na janela. A distância que me separa dele me impede de ver seu rosto, mas posso sentir o seu corpo miúdo próximo a uma rede que o protege do abismo. É de lá, do alto, de costas para a rua principal, de onde é impossível avistar alguém, que ele grita. Gritos que não passam de grunhidos, de berros sem nexo, de mensagens ao léu. De cá, o ouço como se me chamasse, como se falasse à minha infância, ao tempo em que eu, como ele, me debruçava na janela da casa dos meus pais para gritar.

Meu grito, como o dele, era sem nexo e sem destinatário, era apenas um grito para romper o tédio, sentimento incompreensível para as crianças. Eu gritava mais alto e mais agudo que o menino que escuto hoje. Gritava e ria depois, como imagino que ele o faça. Gritava e aguardava as reclamações dos meus irmãos e a reprimenda da minha mãe que me davam a certeza de que meu grito era ouvido. Ele rompia o tédio, ele movimentava a casa, ele me enchia de energia.

Não sei que efeito ele provoca no menino defronte a mim. Não sei se tem irmãos, se a mãe dele o recrimina, se o castiga, sei apenas que ele grita e repete seu grito. Um grito sem nexo, um grito potente, um convite à infância que recebo aqui, como uma intimação. Vou para a janela e grito em resposta ao menino. Ele para, ouve, faz uma pausa e novamente grita. Eu retruco com um novo grito. Ele grita outra vez, modulando a voz para obter novos efeitos. Eu de cá me esmero para emitir um grito diferente. Ele devolve o grito. Eu grito mais uma vez, com medo de estar esgotando meu repertório.

O menino não para, seus gritos não acabam. Eu de cá, tentando renovar meus gritos, me pergunto o que os vizinhos estarão pensando de mim, mas volto a me concentrar em meu interlocutor. O menino sabe de onde vêm os gritos que respondem aos seus. Não vê meu rosto, como não vejo o dele, mas sei que pode perceber pelo meu corpo que sou uma adulta, e parece não se inibir com essa constatação. Me pergunto se minha adultez o confunde. Espero que não. Queria mesmo que meus gritos sussurrassem em seu ouvido que a infância é possível, mesmo quando ela termina, como fazem os seus nos meus.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Uma capela para Maria Preta

Essa capela foi erguida em Tebas, um distrito de Leopoldina, em Minas Gerais, pelo meu avô Jacy, a pedido de um preto velho que o protegia. Pai Inácio, como o chamávamos, baixava em meu tio avó, um homem branco, filho de uma família rica de Campos dos Goytacazes que faliu, durante uma enchente que melou um grande depósito de açúcar, seu negócio. Os encontros com Pai Inácio eram compartilhados por todos da família, velhos, adultos e crianças. Ficávamos em volta do velho, com seu cachimbo no canto da boca, a ouvir a fala do povo tão distante da casa apalacetada em um bairro nobre do Rio, em que moravam meus avós, esse tio e a mulher. Eram noites de muita esperança na vida que até hoje, em minha memória, me enchem de afeto. Meu avô foi o primeiro dos quatro anciões da família a morrer. Morreu cedo, aos 73 anos, de um infarto fulminante, deixando seu lugar em minha vida para ser ocupado por esse tio-avô. Salvador, era o nome dele. Só lembro dele velho, com o mesmo cachimbo do Pai Inácio na boca, um roupão de toalha cinza claro e uma sandália franciscana a se arrastar pela casa. Era um homem assertivo, autoritário até, com um travo amargo que vinha de dias ruins, quando o pai falido se matou e deixou a mulher com uma penca de filhos, mas sabia também ser doce, divertido e surpreendente. Até hoje me pergunto como ele, com sua origem, recebia um santo de preto. Um santo que pedia pelos pretos, como foi a tarefa de construir essa capela que legou a meu avô. A família era católica, as duas mulheres, irmãs, piedosas italianas nascidas no Brasil, que rezavam para todos os santos. A capela era uma homenagem da família a Maria Marta, uma mulher escravizada que ao adoecer foi largada pelo cruel senhor no meio do pasto. Morreu lentamente, sofrendo a dor da doença e do abandono. Morreu como mártir, e, assim, foi tratada pelo povo da terra que começou a pedir a ela pelos seus, deixando velas e votos no local de sua morte. O prestígio de Maria Marta ou Maria Preta crescia a cada graça recebida, até que um dia, a pedido de Pai Inácio, meu avô começou a ergueu uma capela em seu nome, no lugar da velha cruz de madeira construída por algum devoto. A preta que morreu no meio do pasto virou santa na cabeça do povo, mas não foi aceita pela Igreja local, cujo padre se negou a benzer o local. Lembro bem da confusão que isso causou em minha família, no dia da inauguração da capela, nos idos dos anos 1970. Meu avô já havia morrido e todos estavam reunidos, tensos, querendo mandar um enviado para Leopoldina ter um duro tête-à-tête com o padre. Meu pai distribuiu tranquilizante para todos e a capela foi inaugurada sem as pompas da Igreja. Anos depois, meu tio, de nome Salvador, como o tio, terminou a capela e entregou sua administração para a Igreja. A capela não foi a única homenagem aos pretos que Pai Inácio encomendou ao meu avô. Ele pediu também, décadas antes de eu nascer, que a família promovesse uma festa no dia 13 de maio para os ex-escravizados e seus descendentes. Uma festa que era aberta na manhã do dia 13 por uma banda de música, continuava com sanfoneiros e era regada a muita cachaça, pão e mortadela. O forró era para todos, durava dois dias e atraía muitos pretos da região. Minha mãe, ainda namorada do meu pai, viu algumas dessas festas e conta da alegria e das bebedeiras homéricas dos convivas, alguns deles ex-escravizados. Era uma festa de brancos para pretos - coisas desse Brasil - que lamento não ter conhecido. Imagino uma festa animada por um grupo de caxambu, o ritmo afro-brasileiro que nasceu nos terreiros dos escravizados, em um pátio de terra, com muitas bandeirinhas, fogueira, latões de leite cheios de cachaça e bancas de comida abastecidas pelas mulheres da família. Imagino a alegria da música, da dança e dos cantos, misturada à dor ainda viva da escravidão. Um mundo que se perdeu com o tempo, a migração para a cidade grande e a chegada das novas gerações. Saudades de meus avós e do Pai Inácio, de quem sempre lembro com o carinho e o amor que eu tinha pelo vô Salvador.

PS: A foto eu peguei no perfil da Rozane Reis, no Facebook, que mantém uma página sobre Tebas.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Nunca precisamos tanto de um natal. Enfim, é Natal!

Esse Natal não será fácil. Famílias enlutadas, separadas, assustadas. Brasileiros abandonados à própria sorte, contando apenas com seu juízo pra seguir adiante, governados por um genocida de extrema direita, incapaz de ter empatia com seu povo. É verdade que não temos o que comemorar hoje, mas o Natal de Cristo não tem nada a ver com a festa de consumo e ostentação em que transformamos essa data. É apenas um dia pra celebrar a vida, renovar as esperanças e os laços com quem amamos. Nunca precisamos tanto de um natal. Por isso, apesar de tudo, desejo um bom Natal para todos.
❤

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Uma escola para pais e filhos serem felizes

Hoje, vou falar da escola dos meus filhos. Eles estudam, desde a educação infantil, no Ceat, que se abriga em um cantinho de Santa Teresa, alimentando-se dos ares da Floresta da Tijuca. A escola é um sonho. Instalada em um castelo, forma crianças antenadas com seu tempo e sua gente, solidárias, competentes e felizes. Crianças que podem, no ambiente escolar, viver  integralmente, acionando corpo, mente e  sensibilidade. Crianças com permissão para brincar, para criar, para agir. Crianças-sujeitos são elas no Ceat, que há 50 anos forma cidadãos. Meus filhos e nós, seus pais, somos apenas um pouquinho dessa história, mas todas as vezes que entramos no Ceat nos sentimos inteiros nesse lugar, em que o tempo corre pelos pés dos meninxs que têm o privilégio de crescer naquele pátio, nas curvas do castelo, sob os olhos de tantos professores e funcionários comprometidos com um futuro melhor. Estar no Ceat é, sem dúvida, uma bênção e um privilégio. Nos alenta, nesse mundo de tão pouca empatia, poder contar com uma escola que resiste à banalização da vida e da vontade de saber. Contar com esse corpo, formado por professores e funcionários que promovem a auto-gestão de uma escola sem patrões, para as melhores e necessárias lutas em defesa da educação pública de qualidade. Contar com gestores que criam laços com quem preenche a escola de vida (professores, funcionários, pais, mães e filhxs), e, por isso, estão sempre preocupados em criar políticas de proteção ao emprego e de permanência dos alunos na escola. Em tempos tão bicudos, promovidos pela mais injusta e insensível política econômica que o país já viu, as escolas particulares estão demitindo e perdendo alunos. O Ceat também perdeu alunos, em um drama vivido por todos na escola. As crianças se viram afastadas em seu dia a dia de amigos queridos, os pais que foram, foram tristes, os que ficaram, ficaram também tristes. A vida seguiu, como deveria seguir, mas o que passou não se pode esquecer. Ainda bem. Foi por lembrar, por perceber a falta dos que se foram nas salas de aula é que o Ceat, por meio de seu corpo de professores e funcionários, tomou uma decisão improvável. Congelar os salários de professores e funcionários para congelar também as mensalidades, mantendo os valores desse ano no próximo. Uma decisão que só pode ser tomada sem trauma por uma escola gerida por seus próprios professores e funcionários, em defesa do emprego e da permanência de seus alunxs, em sua maioria, como a própria gestão apontou, filhos de professores, profissionais liberais, artistas, produtores culturais, enfim, de atingidos pela política de terra arrasada do atual desgoverno. Por isso, digo sem medo de errar: eu  o Ceat.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Sobre ser Kihu e seus voos

Um bando de Kihus
Kihu é uma ave de arribação que, todos os semestres, assim que se iniciam as férias escolares, bate asas para a Serra do Matoso. Ela vai em bandos de 45, com pressa para chegar naquela nova terra. Nova, mas sempre a mesma. Pouca coisa muda por lá. Uma ou outra Kihu se junta ao bando, ansiosa por novos ares. O tempo que as Kihus passam na Serra do Matoso é precioso. Só elas podem sentir o cheiro do mato e das flores que cobrem aquele chão, das árvores que lhes garantem sombra, o frescor da água de nascentes em seus corpos, o calor dos cães ansiosos por acolhimento e o olhar misterioso dos gatos que passam a noite a andar pelo mato. Só elas são capazes de encontrar, com seus bicos nervosos, os grãos que se espalham, como moedas em uma caça ao tesouro, pelos caminhos daqueles campos. Quando a noite chega, elas, apenas elas, ouvem o piar das corujas e o burburinho de seus pares. Só elas enxergam o breve piscar dos vagalumes e o brilho do nascer do sol. O farfalhar de suas asas ameaça a calmaria do ar e coloca em movimento céus e terra. Elas trazem novos tempos, que, como em um círculo, é sempre aquele vivido, intensamente, antes e por outros. Mas o vigor de seus corpos subverte a ordem e renova o que era para ser repetido e, assim, o círculo ganha nova atmosfera. Quando uma Kihu envelhece e já não pode mais voar, acompanha atenta o voo das mais novas na esperança de, pelos olhos delas, ver novamente o que lhe é negado por suas retinas cansadas, com tantas idas e vindas. Àquelas que guardam em si a essência de uma Kihu, é dada a possibilidade de experimentar novamente, dispensado a segurança do chão, a magia do voo de uma Kihu. Um voo em que corpo e penas já não são mais sentidos, permitindo apenas a experiência de estar suspensa e livre, de ser uma Kihu.



quarta-feira, 17 de julho de 2019

A estética da vertigem em "Todo cuidado é pouco"

Compartilho, aqui, com vocês meu artigo A estética da vertigem como estratégia de subversão da ordem: um estudo de "Todo Cuidado é pouco", de Roger Mellopublicado na Revista Palimpsesto, do programa de pós-graduação em Letras da UERJ. Meu objetivo foi analisar o livro ilustrado na perspectiva da vertigem. A hipótese que trabalhei é a de que o autor se utiliza da forma da parlenda para criar uma ciranda em que os personagens se transformam à medida em que a narrativa avança, em versos rimados e ritmados. As ilustrações se comporiam, nessa perspectiva, por imagens fragmentadas e circulares, como a de um caleidoscópio, e a leitura dos versos produziria uma espécie de vertigem que libertaria o leitor do sentido estrito do texto, oferecendo-lhe uma experiência lúdica. A narrativa circular, como uma ciranda, é, segundo minha hipótese, não uma reafirmação da tradição dos jogos falados, mas a utilização deles para criar um ambiente de instabilidade que subverte o papel de cada personagem. Essa análise foi inicialmente apresentada como monografia final do curso Línguas do começo, ministrado pela professora doutora Rosana Kohl Bines, no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, da PUC-Rio (PPGLCC-PUC-Rio). Rosana é também minha orientadora de mestrado, a quem só tenho a agradecer pela generosidade e atenção de sempre.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Piedade pouca

Ao sair quarta à noite da PUC, universidade no coração da Zona Sul em que jovens burgueses pagam milhares de reais para estudar, passei por dois meninos ainda mais novos que os meus a vender balas. No fim da calçada, havia um rapaz preto e pobre deitado no chão a pedir dinheiro. Eu, como os outros, olhei para frente, como se em meu caminho não houvesse chão. Segui. Segui incomodada com a pobreza do outro, mas segui para a minha casa. Tomei banho para deixar a rua do lado de fora, jantei com os meus e dormi. Voltei ontem cedo para a PUC e, em meu caminho de ida, lá estava o rapaz, como se o tempo não houvesse passado, no mesmo lugar, com a pouca e rota roupa de antes. Ali, estava ele novamente a meus pés, com as pernas negras e os pés fortes esticados na calçada, como a formar uma barricada. Seus gestos continham a pressa dos que têm fome e o desespero dos que esperam por piedade. Ao ver-me disposta a abrir a bolsa e procurar por um trocado, o rapaz levantou as mãos em prece, como se saudasse um deus que dirigisse a ele sua graça, e, ao ver as moedas, abriu-as para receber tão acanhada piedade. Eram apenas quatro moedas. Quatro moedas que não somavam mais do que um real e cinquenta. Uma piedade tão pouca para gestos tão largos, que, ao dar as costas para ele e seguir em meu caminho, chorei. Apenas chorei. 
#LulaLivre 


PS: Posto a capa do conto A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, por ele provocar em mim a mesma emoção que senti ao ver o rapaz que estava na calçada da PUC aos meus pés. Já falei disso aqui no blog, se quiser, clica aqui e volta lá.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Eu, o jornal, os poetas e a vontade de habitar meu tempo

Jornal foi uma paixão na minha vida. Não me lembro de um dia sequer na minha infância em que ele não estivesse lá, nas mãos do meu pai, que abria aquelas páginas enormes, abundantes de notícias e anúncios impressos em papel frágil que manchava suas mãos. Eu, mesmo infante, não ficava alheia àquele mundo de adultos em que se discutia os rumos do país e da humanidade. Via o jornal quase como um oráculo dessacralizado que permitia ao leitor se debater contra suas previsões. Eram palavras ao vento, que mobilizavam moinhos. Um primo do meu pai, vizinho de nossa casa de campo, chegava a ficar rubro de raiva ao ler O Globo, que se alinhava à Ditadura Militar, e dizia, com uma voz firme que me parecia ampliada por um megafone, que lia O Globo para se irritar e o Jornal do Brasil para se informar. Nós, como ele, nos ligávamos ao mundo que deixávamos para trás, em busca da paz das férias no campo, pela cesta do seu Levi, um homem de meia idade que vendia jornal, biscoito de polvilho, doces, legumes e algumas conveniências raras em um lugarejo como Tebas, no interior de Minas Gerais. Era uma presença marcante, não por sua beleza, que não tinha, mas pela simpatia e acolhimento que sua figura de homem do campo, com vestes simples, sempre limpas e bem passadas, cabelos brancos, bochechas rosadas e mãos gordinhas, nos transmitia. Eu acompanhava as discussões políticas, das quais seu Levy participava, com a boca de menina toda suja de polvilho e os olhos atentos em um mundo que eu ainda não conhecia.
Ele ia embora para cumprir o resto de sua jornada de trabalho e o jornal envelhecia na mão do meu pai e de seu primo. Passado o meio dia, o que as manchetes nos informavam já era notícia velha, sem serventia, e aquelas folhas enormes e sem refinamento iram servir à limpeza da casa ou ao embrulho de produtos que não exigiam grande higiene. Assim, aos poucos, sem me aperceber fui tomando gosto pelo jornal até que, um dia, me convenci de que estar nele seria uma maneira de participar da vida pública. Eu gostava de escrever e me sentia comprometida com a luta por um mundo melhor. O jornal me parecia o lugar certo para quem, como eu, queria denunciar as injustiças sociais na esperança de superá-las. Assim eu fiz. No derradeiro ano da Ditadura Militar, ingressei na Faculdade de Jornalismo da PUC-Rio certa de que estava saindo do meu mundinho para encontrar o mundo. Um mundo que imaginei possível de ser mirado da janela do prédio do Jornal do Brasil, por onde eu passava em todos os meus retornos ao Rio, e, por sorte ou capricho do destino, foi onde tive a minha primeira experiência em redação. Foi naquele prédio imponente, ancorado em frente ao porto, no início da decadente Avenida Brasil, que eu pisei pela primeira vez em um jornal. Era uma menina ainda, com minha maioridade recém-completa, quando a convite de José Carlos Monteiro, meu professor e então editor do Informe JB, entrei naquele salão enorme em forma de H e me deparei com o burburinho característico de uma redação de jornal. Um frisson produzido pelo tilintar das máquinas de escrever e pelo andar frenético de homens e mulheres para lá para cá, atendendo o telefone como se do outro lado da linha estivesse o presidente da República, o Chico Buarque ou o Pelé. Eles falavam alto como se não houvesse mais ninguém naquele ambiente, em que o tempo parecia acelerado e estranho a quem não estivesse ali. O que mais me impressionou foram os fios, muitos fios descendo do teto para as incontáveis mesas de trabalho. Eram materiais conexões com o mundo e, por isso, estar ali e não se imaginar em seu no centro era humanamente impossível. Essa centralidade a faculdade nunca me dera, nem mesmo insinuara e, ao longo
daquele primeiro ano de curso, fui me convencendo de que não mais me daria. Eu tinha pressa e me transferi para a faculdade de Sociologia e Política, onde o meu tempo pulsava com vigor. Vivíamos nosso dia a dia, nos corredores da PUC, como se o futuro dependesse de nós. Mas não. Eu continuava na borda, lutando para, como João Cabral de Melo Neto, habitar o meu tempo, para encontrar, como Octavio Paz, "a porta de entrada para o presente" e, assim, "ser do meu tempo e do meu século". Tempo que só experimentei de verdade em meu reencontro com o jornal, que aconteceria quase uma década depois do meu ingresso na universidade, com meu retorno à PUC e à faculdade de Comunicação. A porta que transpus para me sentir novamente no centro do mundo foi mais uma vez a do Jornal do Brasil, com sua redação, agora, silenciada pelo computador e diminuída pela arrastada crise que acabou definindo o fim daquele impresso que marcou a história da imprensa no Brasil. Ali, comecei minha carreira de jornalista, ali, aprendi quase tudo que sei de texto, foto, notícia e edição, ali, me senti finalmente habitando o meu tempo, o meu século. Habitando-o como eu podia, com todas as críticas e incômodos que ele me causava, mas habitando-o. O importante, como diz o poeta, era estar ali, enquanto ele ocorria, ao vivo. Foram doze anos de redação. Do Jornal do Brasil fui para O Globo e de O Globo para assessoria de imprensa. Mantive-me na política, razão da minha paixão pelo jornal, e,  assim, continuei, mesmo de fora, a fazer parte do mundo das redações. Eu de um lado, repórteres de outro, todos a favor da notícia e eu, sempre, indo ao encontro do meu tempo. Mas o meu século acabou e veio outro, ainda meu, apesar de estranho tempo em que o jornal já não está mais no centro do mundo, em que o mundo não tem mais centro e todos, inclusive eu, vivemos nas bordas. Minha luta, agora, é para habitar as bordas e alargá-las na busca de uma entrada para um novo presente, um novo tempo, um novo século.

PS: Não deixem de ler O jornal, de Patrícia Auerbach, editado pela Brinque-book. Um lindo livro de imagens - de onde tirei as que ilustram esse texto -, que me inspirou a pensar na importância do jornal na minha vida. Assim mesmo, com artigo definido. E já que falamos do tempo: desejo a todos um feliz 2019. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O olhar mágico de Lúcia Hiratsuka sobre o mundo

As vezes eu fecho os olhos para tentar imaginar o sítio onde Lúcia Hiratsuka cresceu, em Duartina, no interior de São Paulo. Não consigo. O que me vem aos olhos é Tebas, com o chão úmido de orvalho, em que a terra se insinua pelas falhas da grama e onde estão gravadas minhas pegadas, o rastro de um tempo para mim perdido. É nessa Tebas, quase mil quilômetros distante de Duartina, que inscrevo as rememorações de Lúcia, em Chão de peixes, editado pela Zahar, com o capricho que a autora merece. É lá que experimento o tempo vagaroso da criança que consegue enxergar, em um breve instante, o capim reverenciando o grilo atleta que ocupa uma das folhas brancas do novo livro de Lúcia. Um chão que, como diz o nome, é fluido, permissivo ao olhar de quem vê no que não é o que poderia ser. Permissivo à interferência da criança, capaz de caminhar por uma senda, como imagino Deus tenha caminhado no dia da criação. Permissivo à vontade da artista que modela esse novo mundo de acordo com sua sensibilidade, feita matéria em poeminhas que, como os haicais, falam da natureza. Poeminhas ilustrados com as pinceladas da secular técnica sumiê, presente em outros de seus trabalhos. Chão de peixes é mais que um livro, é um convite para uma outra relação com o tempo e as coisas da vida, um convite para sentarmos com nossas crianças apenas para ver as coisas do mundo em movimento, um movimento que, se aceito, pode nos levar a experimentar novos prazeres. É a possibilidade de nos fazer encontrar no chão dessa memória - a folha branca do livro aberta à imaginação - a criança, que, como nos ensinou Walter Benjamin, busca semelhanças no que vê e, por isso, guarda um olhar promissor para com as coisas prosaicas da vida, que nós adultos não conseguimos mais ver valor. É magia que Lúcia nos oferece em seu livro. A nós, resta apenas agradecer.

domingo, 2 de setembro de 2018

O cão que os meninos sempre quiseram ter

Chegamos no Porto, dia 16 de julho, depois de uma gostosa temporada em Lisboa, onde tivemos o primeiro e encantador contato com Portugal. No Porto, encontramos uma cidade diferente em tudo de Lisboa. No clima, mais quente; no colorido do céu e dos edifícios, mais cinzento; na geografia, mais plana; no desenho urbano, mais moderno; e na atmosfera, dominada pelos grasnados das gaivotas que sobrevoam a cidade todo o tempo, mais misteriosa. Uma cidade bonita, com bairros nobres de belas casas, sítios históricos bem preservados e animados, como a beira do Rio D'Oro, curiosidades, como a Livraria Lelo e a casa natal da poeta Sophia de Mello Breyner Andressen que, hoje, abriga a interessante Galeria da Biodiversidade, enfim, muita coisa bacana para ver e fazer. Mas Porto ficará em nossa memória como a cidade em que decidimos aumentar a família, com a promessa de que daríamos um cão para os meninos. Um cão sonhado por anos que fazia com que os dois, de tempos em tempos, voltassem contra nós, pais temerosos de assumir mais essa responsabilidade, suas baterias, com insistentes e suplicantes pedidos. Até que, um dia, no Porto, a estratégia deu certo. Não me lembro, confesso, como o papo começou. Mas eles, de olho comprido em todos os cães que viam na rua, passaram todo nosso primeiro dia de passeio na cidade mais preocupados em escolher uma raça e um nome para o cachorro que não tinham, do que com sua paisagem urbana e secular. A brincadeira foi ganhando um corpo tão robusto que, em alguns momentos, eles se esqueciam que nada daquilo era verdade e se viam certos de que o cão já era uma realidade, como se estivesse ali, unido a eles por uma guia e muito amor. O assunto dominou todo o dia, até quase nos levar a loucura. Em busca de paz, apelei.
- Antônio, vai escolher um livro pro cachorro - disse, enquanto fuçávamos as estantes da Livraria Lello. 
Surpreso com a sugestão, buscou a palavra segura do pai.
- Cachorro sabe ler?
- Sim - o Cadoca confirmou, vendo nessa resposta a possibilidade de se livrar da insistência do filho.
- Mas ele já nasce sabendo? - quis detalhes, enquanto folheava um livro na esperança de achar um que agradasse ao cão que não tinha.
Eu, que escolhia um livro, não consegui deixar de prestar a atenção ao diálogo mais do que improvável do meu menino com o pai e, depois de ver o empenho dele, quedei-me culpada por o estar enganando e confessei.
- Antônio, deixa de ser bobo. Você há viu um cachorro que saiba ler?
O muxoxo que se seguiu não conseguiu apagar de sua carinha o ar feliz de um dono de cão leitor. 

- Pô, eu tava acreditando - disse, escondendo um sorriso envergonhado.
E, sem se abater, continuou, em uma forte aliança com o Pedro, que sonha com um cachorro há mais de uma década, a acreditar que nos dobraria. Os dois falaram de tudo, prometeram tudo, imploraram tudo e, vencidos, foram deitar abandonando suas esperanças. Foi, então, que o Cadoca, com o coração de pai amolecido pelas súplicas, olhos vermelhos e olhares derramados para qualquer cão que aparecesse na rua, decidiu ceder. E, na cabeceira da cama deles, prometeu.
- Meninos, nós vamos ter um cachorro. Quando chegarmos no Rio, escolhemos a raça, tá bem?
O Antônio explodiu em lágrimas, as mesmas que corriam tristes e disfarçadamente minutos antes, e o Pedro vibrou como em fim de campeonato. A surpresa logo cedeu à euforia e os dois se abraçaram, rolaram na cama, comemoram e, por fim, dormiram sonhando com o cão que eles sempre quiseram ter. Aquele cão que povoou a infância deles por meio de livros, como o do Otto, bonecos de pano e simples e poderosas fantasias. Ela ainda não chegou, mas como o Pedro bem disse, é como se ele nunca estivesse estado longe de nós. 

terça-feira, 28 de agosto de 2018

A ida e a volta de uma aventura transatlântica

Visitamos Óbidos, no dia 11 de julho, poucos dias depois de chegarmos a Portugal. Uma cidade linda, mas, como um cenário, sem alma. De início, ficamos impressionados por sua muralha medieval e suas casas acanhadas se amontoando em vielas e ladeiras. Todas brancas, coloridas apenas pelo azul e amarelo que nos acostumamos a ver em nossa arquitetura colonial, e ostentando flores nas janelas que compõem um bucólico cenário. Uma impressão que foi se esvaindo à medida em que avançávamos por seus desvios. As casas, outrora habitadas pelo povo da cidade, servem hoje a lojinhas que vendem quinquilharias indianas, lembranças industrializadas que se pode achar em qualquer canto do país, miniaturas de cavaleiros medievais, comida e ginga, a aguardente típica da cidade. Para completar, a cidade é lotada de turistas que andam de cá para lá sem qualquer objetivo a não ser estar dentro das muralhas de Óbidos. Não há muito para ver, além das casas e vielas, que, lotadas, não nos permitem nenhuma experiência sublime. O Pedro me pergunta se as casas são também moradia. Digo que sim. Mas, logo, sou desmentida pela moça que nos atende na Fundação José Saramago, instalada em típica casa do lugar. Ela nos explica que a grande maioria dos moradores deixou as muralhas para se instalar na cidade nova, como ela, uma jovem que pouco sabe da história de Saramago. Fazemos uma pausa na fundação, vemos as fotos expostas, olhamos a estante em que há as edições portuguesas dos livros do autor e algumas traduções, os meninos se divertem correndo pelas escadas, aproveitamos o banheiro e saímos. De volta à rua e à pequena multidão que se aglomera por lá, seguimos para o alto da vila, onde fica a famosa livraria instalada em uma igreja. A inadequação do lugar a seu uso é clara e as estantes se ajeitam como podem no lugar onde antes haviam bancos para os fieis. Confesso que, não fosse o inusitado da coisa, não teria gostado da livraria. Mas só entendemos o uso exótico do templo, em Évora, onde um católico nos informou que há muitas igrejas abandonas em Portugal, por causa da crise de vocações religiosas. De novo na rua, nos reunimos e decidimos voltar para Lisboa, em busca de um restaurante sem as moscas que infestam Óbidos, não sem antes dar uma paradinha para comprar um queijo de cabra, parada que rendeu uma rica conversa transatlântica.
- Mãe, os brasileiros que vem morar em Portugal têm que aprender português - Antônio perguntou, interrompendo minha negociação com o dono dos queijos.
- Não, Antônio, falamos a mesma língua que eles. A diferença que você está percebendo é apenas o sotaque, algumas palavras e expressões. Mas isso não impede de nos entendermos - expliquei, rindo de sua lógica de menino.
- Vocês falam português, como nós - emendou o simpático senhor que nos atendia -, afinal, fomos os primeiros a chegar ao Brasil.
- Não foram, não - eu disse, sem nenhum traço de raiva na voz -, os índios é que foram os primeiros.
- Mas fomos nós quem descobrimos o Brasil - replicou o português, meio desconcertado com a minha negativa.
- Não foram, não - repeti -, vocês não descobriram o Brasil, vocês o colonizaram - eu disse, com tamanha convicção que o homem preferiu calar-se.
O Antônio que, sem querer, causara o constrangimento, aproximou-se do pai e do irmão para contar o diálogo e, rindo, me acusar de querer arrumar confusão com o simpático português. O que ele não contava era com a reação do Pedro, que ficou do meu lado com entusiasmo.
- Minha mãe tá certa. Eles são colonizadores, não são descobridores de nada - disse, em tom inflamado.
A indignação do Pedro o guiou por Portugal e o Sul da Espanha e nos fez pensar sobre nossas relações com os colonizadores e nossos laços com a Europa, a matriz do Ocidente cristão do qual fazemos parte, mesmo que com pé dentro e outro fora. Questões que estiveram presentes em quase todos os lugares que visitamos, desde as igrejas banhadas a ouro e prata latino-americanos, até os sítios arqueológicos que mostram que a história de nossos colorizadores foi marcada por uma longa e sangrenta luta pelo território. Questões que eclodiram nos comentários que o Pedro e o Antônio deixaram no livro de visitas do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. O primeiro denunciou o sofrimento dos povos nativos, no Brasil português, e, o segundo, a superioridade de Pelé sobre Euzébio. Mas há quem, como Lúcia Fidalgo e a ilustradora Andréa Resende, faça isso de forma poética, nos reaproximando daquele povo que arriscou-se no mar em busca de novos territórios. "Pedro, menino navegador", que infelizmente saiu de catálogo com o fechamento da Manati Editora, é um belo exemplo de como apresentar para crianças uma questão tão complexa. Não nos deixa esquecer a aventura épica que foi as navegações e, ao mesmo tempo, a violência da colonização. Vale a pena procurá-lo em sebos. Deixo, aqui, um pouco de Fernando Pessoa, como homenagem aos portugueses que lá nos acolheram com carinho, 500 anos depois de darem com os costados em nossas terras.

 MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


domingo, 1 de julho de 2018

Um passeio por uma loja de brinquedos do Rio

Passeio pelos brinquedos de Berlim, de Walter Benjamin, uma das narrativas do filósofo judeu-alemão apresentadas na rádio alemã, entre 1929 e 1932, antes da ascensão do nazismo, é uma leitura deliciosa sobre a relação dos seres humanos com os brinquedos. Benjamin fala para uma criança próxima dele, lembrando de sua relação com os brinquedos da infância e contando um pouco da história desses objetos encantados e encantadores e de seu poder como mercadoria. Impossível atravessá-la sem deixar as portas da memória abrirem-se. Lembrei da boneca preferida, de como ganhava vida em minhas mãos, das brincadeiras com meus irmãos, dos brinquedos desejados e nunca recebidos, de transformar restos em objetos preciosos para as minhas brincadeiras, de meus amigos imaginários dividindo comigo esse mundo encantado. Eu, como ele, me permito continuar acreditando que as lojas de brinquedos "são pontos estratégicos e por isso, são as primeiras que os coelhos de páscoa ocupam quando eles saem ao ataque". Coelhos e crianças curiosas, como a narrativa me fez lembrar, de uma aventura do Pedro, meu filho, quando ainda era um pequenino de apenas quatro anos. Você vai me perguntar como, depois de tantos anos, tenho certeza de que ele tinha quatro anos. Simples. A aventura do meu menino foi se perder em pleno fim de semana, em um grande shopping do Rio. Um episódio como esse, nenhuma mãe esquece, ainda mais, quando estava barriguda do segundo filho, comprando roupinhas para seu enxoval. Pois bem, estávamos eu, ele e o Cadoca passeando pelo shopping, quando encontrei a Dulce, uma amiga querida, e parei para dois dedos de prosa. Não sei bem quanto tempo levei falando com ela, já que o tempo nessas ocorrências é impossível de ser contado, mas sei que foram poucos instantes. Poucos e suficientes para o Pedro, pequenino como era, sumir de nosso campo de visão. Foi o Cadoca que primeiro percebeu sua falta. Quando vi, ao meu lado, o vazio, me desesperei.
- Pedro - chamei alto, já apavorada, tentando me controlar.
Nada. Nada dele responder ou aparecer. Fiquei em pânico, pensando na possibilidade de não encontrá-lo mais. A Dulce, mãe de dois filhos grandes, tentou me acalmar. O Cadoca, apesar de inseguro como eu, manteve a calma e foi logo pedir ajuda aos seguranças.
- Nosso filho sumiu, o senhor pode nos ajudar - pediu.
Na mesma hora, o homem comunicou a seus pares, por um rádio-transmissor, que um menino de quatro anos, vestido com um shortinho estampado e uma camiseta laranja, calçando uma sandália Ortopé, estava perdido no shopping. Voltando-se para nós, explicou.
- Quando uma criança se perde, todos os seguranças observam as portas para impedir que elas saiam do shopping. Os senhores podem ficar calmos, nós vamos achar o menino - disse para nos tranquilizar e completou - Vamos começar a procura pela loja de brinquedos, aqui do térreo. Mais de 90% das crianças que se perdem são encontradas na loja de brinquedos.
Ela não estava longe e corremos todos para lá. Eu, Cadoca, Dulce e o segurança. A loja é uma das maiores do shopping. Grande, com enormes vitrines, porta larga e escancarada, atendentes sorridentes e muitos, muitos brinquedos cobrindo o chão, as paredes e se exibindo para os curiosos. No fundo da loja, estavam dispostos os brinquedos para bebês e crianças pequenas. Coloridos, sonoros, enormes e convidativos. Na frente deles, contemplativo, estava o Pedro olhando-os atento, ignorando nossa  procura. Diante da parede ocupada por brinquedos de alto a baixo, parecia ainda menor do que era. Ao vê-lo, toda a minha angústia explodiu e caí no chão, de joelhos, para abraçar meu pequeno, recuperado, de volta ao ninho. Ele me olhou espantado, sem entender tanto nervosismo e choro, e, silenciosamente, com aquele olhar exclusivo das crianças, se indagou se eu estava perdida.

domingo, 10 de junho de 2018

Água bastante




Água bastante

O que verto pelos olhos não é mais do que um filete d’água,
como aqueles que enchem os córregos da minha infância.

Córregos de água pouca, água contida.
Água que contém tudo.

Água doce, água salgada,
que lava, lambuza,
derrama, limita,
que move o fluxo e o refluxo.

Água pouca, água bastante
para transbordar de mim
tudo o que, com esforço, boto para dentro.

L.C. Rio: 12/5/18


domingo, 13 de maio de 2018

Eu e, sempre, eles






Eu e eles


Um dentro e outro fora.
Os dois fora.
Os dois no meu coração.

L. C.  Rio: 10/04/2014





@Fotos Macarena Lobos e Claudio Oliveira

quinta-feira, 15 de março de 2018

A Marielle que habita em cada um de nós

Sempre achei que calor não combina com enterro. Talvez porque a maior parte dos meus parentes que se foi, se foi em dias quentes. Penso na morte e me vem logo aquele ar mortiço dos dias de verão sem vento, como se a angústia estivesse presa em uma panela de pressão. Penso no calor das capelas do São João Batista e na velocidade da decomposição de um cadáver no verão. Busco na minha memória cortejos simples, subindo a rua principal de Tebas, com seus paralelepípedos cobertos pelo vapor da pedra castigada pelo sol, que ocupavam o vazio dos dias. No cemitério, lá no alto do morro, não havia quem não sentisse falta de ar. Um ar negado mais pelo calor do que pelo incômodo causado pela morte.

Um calor como o de hoje. Um dia castigado por um sol inclemente que não nos dá conforto nem para chorar a morte. Não choro por nenhum dos meus. Choro por Marielle, a vereadora das margens que lutava por um Rio para todos, e por seu motorista Anderson Pedro Gomes, invisibilizado pelo forte significado da morte da parlamentar. Choro sozinha, em casa, onde permaneço cuidando de meu filho pequeno que sofre há dias com falta de ar. Uma falta de ar literal, que o angustia e assusta, assim como aquela asfixia metafórica que nos acometeu no instante da notícia da execução da vereadora.

Na Cinelândia, uma multidão vela Marielle e clama por justiça. São tantos os olhares que se encontram incrédulos com o rumo que as coisas tomam no Rio e no Brasil, que há mais dúvidas do que certezas. Estão todos ligados pelo assombro causado pelo recado surdo das balas que fizeram tombar Marielle e seu motorista. Até quando? Até aonde eles vão? Perguntam-se todos.

Marielle não viveu como heroína, apenas exerceu plenamente a condição humana de ser político. O que, então, a faz diferente de nós? Talvez o fato de ter exercido essa condição à moda antiga, sem pensar em todo instante nas urgências de seu corpo. Sem pensar somente em comer, beber, viver e evitar a morte. Um compromisso com o que é de todos que a fará eterna na lembrança daqueles que lutam, mesmo que sua vida tenha sido tão banal quanto a dos milhares de homens e mulheres que votaram nela.

As balas que a calaram foram as mesmas que a transformaram em heroína e mártir. Mas elas não foram dirigidas apenas a Marielle e a seu motorista, mas a todos nós, mulheres e homens de vida banal. O recado claro - manda quem pode, obedece quem tem juízo – não precisa ser levado em conta. Nós temos escolha. Mas para escolhermos o caminho de lá e ignorarmos aqueles que julgam mandar e exigem nossa obediência, precisamos olhar para Marielle pelo menos mais uma vez. Precisamos viver como Marielle, sem a pretensão de sermos heróis ou mártires, pensando menos em apenas comer, beber, viver e evitar a morte e mais em exercermos nossa condição humana.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

A foto na cabeceira da minha avó


Tenho muitas lembranças da minha avó materna, que, mesmo morta, ainda faz parte da minha vida. Ela não era uma mulher de fácil leitura. Cresceu e viveu em um pequeno mundo e, nele, se movia obedientemente como se não lhe impusessem limites. Exibia uma beleza discreta, a permitida em seu meio social, e deixava transparecer uma alegria quase envergonhada e alguma tristeza. A maior delas, com certeza, a morte prematura do filho, com 21 anos. Um filho que não conheci e, por isso, nunca chegou a ser meu tio. Dele tenho apenas a lembrança do retrato na mesa de cabeceira da minha avó.

Um retrato de um jovem bonito, sorridente, segurando a rédea de um cavalo de corrida vencedor, como todos esperavam que ele fosse. Um retrato do qual me lembro já esmaecido, desbotado, lavado por uma enchente de Blumenau que quase levou definitivamente de minha avó o filho tão amado e perdido. Naquela foto em sua mesa de cabeceira, aquele rapaz viveu até o último minuto da vida de minha avó. Ela se foi em 1993, na noite em que Madona sacudia o Maracanã. Eu estava lá e, ao chegar em casa, soube de minha avó. Hoje, a tenho em minha estante, em duas poses sorridentes. Uma mulher ainda jovem, bonita, de outro tempo a olhar por mim.

Assim são os retratos para mim. Objetos quase sagrados que mantêm viva a aura de quem se foi, de quem amamos, como se fosse possível dar forma à memória. Perdê-los seria materializar a ameaça sempre viva na cor desbotada do retrato do filho de minha avó. Seria ainda mais. Seria ver morrer mais uma vez aqueles que já nos deixaram. Seria me ver apartada de minha memória, sozinha, sem materialidade para a minha história. É dessa ameaça de separação forçada entre nós e a memória que lembro daqueles dias em que, no Jornal do Brasil, me dediquei ao drama dos moradores do Palace II, o prédio construído pelo então deputado Sergio Naya na Barra da Tijuca, que desabou em um domingo de carnaval de 1998, matando oito pessoas e deixando centenas de desabrigados.

Era madrugada do dia 22 de fevereiro de 1998 e eu estava na Avenida Marquês de Sapucaí cobrindo o carnaval. Não me lembro de a notícia me ter chegado em meio à folia. De manhã, de volta à redação, soube do desabamento. Não havia ainda informação suficiente para sabermos da dimensão da tragédia. Era mais um drama em meio a tantos que cobríamos. Todos os recursos do jornal que não estavam empenhados no carnaval da Sapucaí foram desviados para a cobertura jornalística sobre o Palace II. Eu só cheguei a ela na quinta-feira, depois do anúncio das campeãs.

Eram muitas histórias tristes. As mortes, os desabrigados, o prejuízo da maioria que ainda não havia quitado o financiamento do prédio habitado há apenas dois anos. Tudo concorria para aquela ser uma das maiores tragédias a se abater sobre a classe média carioca. Não me lembro bem qual foi a minha participação na cobertura daqueles primeiros dias, o que me marcou foi a noite que antecedeu à implosão do prédio, ordenada pela prefeitura. O prédio veio abaixo de vez em um domingo, dia 28 de fevereiro, após o desfile das campeãs.

Dessa vez, eu não estava na avenida. Passei a noite, com um farnel e alguns colegas, em frente ao prédio que ruiria assim que o dia amanhecesse. Fui pra rua sabendo que minha pauta podia não dar em nada, que eu podia voltar de mãos vazias para a redação. Meu chefe, o Zé Luiz Alcântara, de quem fui amiga até o fim, me chamou em seu aquário e me pediu que passasse a madrugada em frente ao prédio, para fazer uma matéria caso algum morador tentasse entrar nos escombros, antes da implosão, para resgatar documentos, fotos ou memórias. A tristeza dos moradores com a perda de suas referências materiais era tamanha, que tínhamos medo deles desafiarem a morte em busca de algum resquício da vida que ficara para trás.

Naqueles dias, mulheres não davam plantão de madrugada, em jornais. Os perigos da noite ficavam reservados aos homens. Zé Luiz, amigo querido, me deu a possibilidade de recusar a tarefa, mas eu topei. A vontade de estar lá era maior do que o desconforto e os possíveis riscos de passar a madrugada em uma rua deserta da Barra da Tijuca. Foram horas de vigília. Ao contrário do que temíamos, ninguém se aventurou por lá. Nem na rua, nem nos escombros. Havia só seguranças para impedir a entrada na área impedida e uns poucos repórteres. 

Passei a noite imaginando o que estaria debaixo do amontoado de concreto que víamos de longe. Os móveis de uma avó já falecida, o anel que passou de mãe para filha e para neta, a abotoadura que veio na camisa do avô, aquele quadro do amigo talentoso, o faqueiro de família, os cristais ganhos no casamento, a caderneta de escola, a carta do primeiro namorado, a flor ressecada entre as folhas do diário de adolescente, o primeiro cacho de cabelo do filho já adulto, a roupinha usada no batizado do primogênito, a foto de bebê e da formatura, o livro favorito, a coleção de discos, a carteira de trabalho, o caderno de poesias nunca publicadas. 

Passei a noite imaginando a dor de perder o que nos faz lembrar, pensando na foto do filho de minha avó, em sua cabeceira, na dor que seria para ela perdê-lo novamente.


OBS: Peço desculpas por não ter falado de um livro para crianças, nem dos meus filhos. Quis olhar para trás, falar da memória. Da foto na cabeceira de minha avó. Das perdas de quem viu sua casa ruir na tragédia do Palace II, que completou ontem 20 anos. 


segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Um sopro de possibilidades na primeira manhã de 2018

Hoje é o primeiro dia de um novo ano que promete ser osso duro de roer. Um ano depois de outro ano difícil, em que perdemos muito, aqui no Brasil, mas ganhamos a certeza de que a vida é isso: luta. Mas para lutar é preciso também alguma ternura, ou melhor, é preciso poesia. A liberdade e a fantasia, ao contrário do que ouvimos, desde crianças, não são escapismo, são possibilidade. A arte é isso, liberdade, fantasia e possibilidade. Eu diria, parafraseando Ferreira Gullar, que a arte é essencial quando a vida falha. É dentro de seu círculo, ou extrapolando seus limites, que a vida se amplia, promete o que nos parece impossível e nos faz mais humanos. As crianças vivem a permanência desse estado de possibilidade, negado a nós pelo racionalismo que nos rege no mundo da produção, por experimentarem a liberdade e a fantasia em seu cotidiano. Uma experiência singela, difícil de ser captada por nós, adultos, sempre tão rasos e complexos, mas encantadora, como é o livro Lina e o Balão, da japonesa Komako Sakai, editado pela Pequena Zahar e traduzido por Lúcia Hiratsuka, sempre tocada por um olhar infantil. A narrativa trata da relação de Lina com um balão de gás e é construída em um texto que preserva a inocência da criança e por delicadas ilustrações que trazem em seus traços um ar retrô, que nos remete a um tempo em que a infância era protegida das verdades da vida. A menina de Komako é quase um neném e brinca com seu balão, como se ele tivesse vida. E tem. Atravessado pelo olhar mágico de Lina, o balão vira um amigo constante e sua "fuga" lhe impõe verdadeiro sofrimento. A sorte da menina é ter na mãe uma parceira nessa viagem tão rica que somente a liberdade e a fantasia podem proporcionar. Lina segue se relacionando com o balão, sem ser confrontada com a racionalidade uma única vez. Uma viagem que amplia as possibilidade do "mundo real" e pode tornar a vida ainda mais rica. Uma viagem que, infelizmente, está cada vez mais sendo negada às crianças, em nome de verdades que irão prepará-las para a vida, como se a vida que levamos não fosse o fruto da liberdade e da fantasia humana. Uma história para nos enternecer e, sobretudo, para nos lembrar que a infância é um tempo de possibilidades e devemos não apenas deixá-la se manifestar, mas nos inspirar nela. Que o olhar de Lina sobre o balão nos sirva de  bússola para atravessarmos 2018.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Tecendo a manhã

2017 não foi um ano fácil, mas sigo com esperanças no porvir. Uma esperança, como nos ensina João Cabral de Melo Neto, que aposta na ousadia, no coletivo, no compartilhamento, na parceria. Que terminemos esse ano com boas festas e, em 2018, possamos tecer juntos uma nova manhã. Até!

Tecendo a manhã* 
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 

João Cabral de Melo Neto, 
(A educação pela pedra)

sábado, 18 de novembro de 2017

'Mundo cruel' nos convida a pensar sobre o mundo

Em meio a tantos manuais de boa conduta (que dizem respeito à etiqueta ou ao politicamente correto) e de livros que prometem o caminho da roça para as grandes questões da educação das crianças, é possível achar nas fornidas estantes das grandes lojas do ramo um envelope contendo 14 cartelas, com mais de 100 perguntas e nenhuma resposta, como se estivesse a nos sussurrar: "arrisque-se". Pois vale a pena arriscar-se e puxar da estante Mundo cruel, o mais novo livro, ou quem sabe ficheiro, da Boitatá Editorial, o selo filhote da Boitempo, para o público infantil e juvenil, que trata de situações que dizem respeito a um único e mais do que atual tema: a crueldade. O conceito do livro desenvolvido por Ellen Duthie, também autora dos textos, é, por si só, um novo caminho para ensinarmos nossas crianças a pensar. Ou, como diria Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia da PUC-SP, um não-caminho, que mostre a elas que é preciso "duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho". Essa liberdade deve ser o espírito de quem se aventura a abrir o envelope, com projeto gráfico e ilustrações de Daniela Martagón, que usa de modernas técnicas de comunicação visual para instigar a criança a pensar de forma filosófica sobre acontecimentos aparentemente banais, como uma menina a matar uma formiga, até grandes questões contemporâneas, como experiências científicas com seres vivos. Em todas elas o que está em questão é a crueldade, vista como um conceito. Um conceito que se funda na cultura e se transforma na história. Quem de nós, com mais de 50 anos, não matou uma formiga pelo simples prazer de matá-la, com a mesma cara sádica da menina do cartão? Uma atitude que hoje está em julgamento. Mas será que ela é cruel? É o que nos pergunta o cartão, que traz uma série de perguntas que nos obrigam a relativizar nossa resposta, nos fazendo indagar se elas sentem dor, a razão de queremos matar formigas, se é legítimo matá-la se ela nos tiver picado, se pode ser bom matar formigas, quantas podemos matar e por aí vai. Nas indagações sobre crueldade feitas pelo livro há lugar também para as comparações, que sugerem que nem sempre o que nos parece cruel o é, como é o caso de um leão que come cabritinhas. Será que ele pode se alimentar de outra coisa? Caçar para se divertir é diferente de caçar para comer? São algumas das perguntas feitas às crianças, que me fizeram lembrar de uma velha história de família, em que meu irmão mais novo, espantado com a sala de troféus de caça da casa de um amigo rico de meu pai, perguntou angustiado para minha mãe se o dono daquelas cabeças de bicho caçava por não ter o que comer. A pergunta de meu irmão, ainda uma criança, ficou para sempre, em nossa família, como uma máxima para expressar a crueldade cometida por um homem que se divertia matando animais. Uma máxima que poderia ter saído de uma conversa com as fichas de Mundo cruel. Uma conversa que, como diz a autora em uma entrevista o site do projeto Wonder Ponder, tem por objetivo apenas mostrar que "a vida é estranha, o mundo é misterioso e os seres humanos estão repletos de contradições". Ensinar esse olhar aos filhos tem sido o maior de todos os desafios em um mundo em que, apesar de não haver mais verdades ou modelos, a palavra de ordem tem sido o pensamento único. Um mundo, que apesar de sua ode à diversidade, ainda não derrotou a certeza. Certezas sejam elas conservadoras ou progressistas, mas sempre certezas. Isso me parece contraditório com a ideia de que a cultura da diversidade envelheceu o conceito de tolerância, que pressupõe um lugar ordinário de onde aceitamos o não ordinário, e nos pede agora naturalidade nesse mundo de diferenças. Por essas e por outras, nunca foi tão pertinente indagar sobre o mundo que vivemos. O risco contido nessas perguntas, não pode nos fazer nos esquivar delas. Como disse a autora, a filosofia é rebeldia. "Quando filosofamos nos atrevemos a questionar todas as certezas que nos são dadas e as que cremos haver construído até o momento sobre o mundo e sobre nossa relação com o mundo." Uma liberdade que pode nos levar a questionar até o próprio mundo e nos instigar a querer transformá-lo. 

domingo, 15 de outubro de 2017

Na sala da coordenação


Confesso que nunca fui um aluno quieto. Mas, no quinto ano, me superei. Laura, minha professora, me mandava para a coordenação quase todos os dias. A qualquer sinal de bagunça em sala, estava eu lá, no meio, com papel de destaque. Ela nem pestanejava e olhava para mim com aquela cara que só as professoras regentes de turma sabem fazer e me dava uma bronca. Diante de meu deboche, ordenava firme.

- Carlos, chega! Sai da sala! Espera o tempo dessa aula acabar na coordenação.

Eu ia. De a cabeça baixa, como esperam as professoras que seus alunos punidos saiam de sala. Atrás de mim, ouvia aquele zum-zum-zum que as crianças obedientes fazem ao ver um colega ser expulso da aula, e, assim, que chegava no pátio, respirava fundo aquele ar farto e livre, levantava a cabeça e me dirigia à coordenação.

- Oi, Mercedes – dizia ao chegar, agora com a cabeça baixa -, a Laura mandou eu sair de sala.

- De novo, Carlos – ela me perguntava, sem alterar a voz - Senta aqui, o que aconteceu?

Eu sentava. Era uma sala pequena e acolhedora, em que havia duas escrivaninhas – uma grande, onde ela trabalhava, e uma menor, em que se acomodava sua auxiliar –, duas cadeiras em frente à mesa da coordenadora para receber pais em visita à escola e uma pequena poltrona no canto. Nesta poltrona, Mercedes descansava um pouco depois do almoço e recebia os alunos expulsos de sala. Eu era um dos mais assíduos em seu gabinete e, por isso, ainda sou capaz de lembrar da caneca do Museu Miró que ela usava como porta-lápis, do bloco grande de folhas brancas e sempre rabiscadas permanentemente aberto sobre sua mesa, do aparador ao lado que servia de estante e de pouso para cadernos e trabalhos de escola, do mural no centro da parede em que prendia desenhos de alunos, fotos, cartões e outras lembranças amarelecidas que serviam como prova de seu tempo no magistério, da cortina de palinha que a separava do mundo lá fora e da luz quente que dava um ar aconchegante ao ambiente, que me lembrava a casa da minha avó.

- Eu estava conversando e, quando a Laura me chamou a atenção, eu ri – respondia, agora com a voz acanhada que os alunos expulsos de sala usam para comover a coordenadora.

Meu mal era o riso frouxo. Eu gostava da minha professora. Ela era bonita e carinhosa com os alunos, mas, como éramos muitos e barulhentos, levávamos bronca várias vezes ao dia. Na maioria delas, eu calava, mas quando era o alvo do sermão, não tinha jeito, não me continha.

- Caarrrlos – Laura me chamava a atenção, com aquele tom prolongado de quem está querendo dar uma saída à sua presa.

Eu respondia com um monossílabo qualquer e ela repetia.

- Caarrrlos...

Eu continuava olhando para ela, que repetia mais uma vez. Era quando me dava uma louca, e, com a voz mais afetada que eu pudesse fazer, respondia em tom de galhofa.

- Que-que-é-isso-mulé?!

Todo mundo ria. Era a hora dela perder a paciência e me mandar para fora.

- Carlos, chega! Sai da sala! Espera o tempo dessa aula acabar na coordenação.

Eu ia, como já disse, de cabeça baixa para mostrar algum respeito por ela e, principalmente, para esconder o riso aprisionado em meus lábios apertados, que só relaxavam quando eu encontrava aquele ar livre e puro do pátio da escola. Ao riso inicial dos meus amigos se sucedia um zum-zum-zum que se formava atrás de mim e me enchia de um orgulho infantil, quase narcísico, que alimentavam meu ego que Laura julgava machucado com o castigo. Mas o que eu mais gostava naqueles dias não era o que ficava para trás, era o que estava por vir na sala da coordenação. Depois de uma breve conversa, Mercedes, que, como já disse, nunca alterava a voz, passava a mão macia e quente sobre meus cabelos e, com uma voz de quem está oferecendo o perdão, a estendia em minha direção para mostrar um pote cheio de biscoitos. Cada dia era um biscoite diferente. Os que eu mais gostava eram os de chocolate. Mais raros eram os doces, mas nesses dias eu era o menino mais feliz da escola e desconfiava poder ser até do mundo. Brigadeiro era o mais ansiado por mim. Acho que nunca mais comi brigadeiro igual. O gosto de chocolate era bem forte, suavizando o travo do açúcar, e era acentuado pela cobertura com pó de cacau. Eu amava sentir aquele doce se grudando a meu céu da boca, à espera da saliva que o ia derreter aos poucos, prolongando aquele delicioso sabor.

Saboreando as pequenas delícias oferecidas pela Mercedes, esperava o fim de meu castigo. Ele quase sempre, se eu tivesse feito a coisa certa, terminava com o som do sinal do recreio. Eu, como um bom menino, seria melhor dizer típico, saltava da poltrona da coordenação e saía correndo para o pátio, tão rápido que nem sei se dava tempo de meu tchau alcançar os ouvidos da Mercedes. Era uma delícia chegar no recreio sem aquela urgência imposta pela fome que via em meus amigos. Com a barriga tranquilizada pelos quitutes da coordenação, não precisava correr para a fila da cantina, nem tão pouco ir à minha sala para pegar a lancheira. Meu lanche podia esperar pelo fim do recreio ou quem sabe, se a brincadeira estivesse muito boa, pela saída para ser saboreado na viagem de volta para casa, feita na van da Mari. A Mari não deixava que comêssemos no carro para não atrair baratas, mas, como seu coração era grande, fingia não ver quem discreta e cuidadosamente abria a lancheira para comer aquele biscoito ou banana que, porventura, tivesse sobrado do lanche. O trânsito, ela sabia, aumentava e muito nosso apetite, muitas vezes ignorado na escola em favor das brincadeiras do pátio.

A fome era uma das razões de eu, no quinto ano, ter sido expulso tantas vezes de sala. Depois de uma meia dúzia de expulsões, percebi as benesses de se estar na coordenação e resolvi coordenar minhas ações com o relógio da fome. Assim, criei uma rotina em que meus arroubos de menino malcriado, salvo alguns imprevistos que eu não conseguia contornar, eram quase sempre no último tempo antes do recreio. Naquela aula em que todos, alunos e professores, estão com o estômago colado e os raros silêncios são rompidos por roncos de barrigas angustiadas. Quando a minha dava seu primeiro sinal, era hora de eu incrementar as conversas e mostrar toda a minha graça. A Laura e a Mercedes nunca perceberam a coincidência ou, quem sabe, preferiam ignorá-la. Assim, segui todo o quinto ano merendando na coordenação, o que me deixava livre para brincar no recreio. Tenho certeza de que a Mercedes e até mesmo a Laura, com suas broncas repetitivas, sabiam que eu só ia para a escola para comer e brincar e, no fundo, aprovavam minha motivação. Afinal, para que serve a escola para um menino de 10 anos?

 
*Fica aqui, com essa crônica que escrevi inspirada na conversa do almoço de hoje com meus filhos, minha homenagem ao Dia dos Professores. A tirinha do Calvin é, como sempre, uma delícia. ❤