segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
O primeiro Natal sem ele
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
Hoje é dia de agradecer ao Ceat
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
O Ceat é um lugar para aterrar e para recriar o comum
sábado, 11 de setembro de 2021
Eu e o menino da janela, outra vez
domingo, 18 de julho de 2021
O grito do menino para a menina que um dia eu fui
No prédio em frente ao meu, há um menino que com frequência se diverte gritando na janela. A distância que me separa dele me impede de ver seu rosto, mas posso sentir o seu corpo miúdo próximo a uma rede que o protege do abismo. É de lá, do alto, de costas para a rua principal, de onde é impossível avistar alguém, que ele grita. Gritos que não passam de grunhidos, de berros sem nexo, de mensagens ao léu. De cá, o ouço como se me chamasse, como se falasse à minha infância, ao tempo em que eu, como ele, me debruçava na janela da casa dos meus pais para gritar.
Meu grito, como o dele, era sem nexo e sem destinatário, era apenas um
grito para romper o tédio, sentimento incompreensível para as crianças. Eu
gritava mais alto e mais agudo que o menino que escuto hoje. Gritava e ria depois,
como imagino que ele o faça. Gritava e aguardava as reclamações dos meus irmãos
e a reprimenda da minha mãe que me davam a certeza de que meu grito era ouvido.
Ele rompia o tédio, ele movimentava a casa, ele me enchia de energia.
Não sei que efeito ele provoca no menino defronte a mim. Não sei
se tem irmãos, se a mãe dele o recrimina, se o castiga, sei apenas que ele
grita e repete seu grito. Um grito sem nexo, um grito potente, um convite à infância
que recebo aqui, como uma intimação. Vou para a janela e grito em resposta ao
menino. Ele para, ouve, faz uma pausa e novamente grita. Eu retruco com um novo
grito. Ele grita outra vez, modulando a voz para obter novos efeitos. Eu de cá
me esmero para emitir um grito diferente. Ele devolve o grito. Eu grito
mais uma vez, com medo de estar esgotando meu repertório.
O menino não para, seus gritos não acabam. Eu de cá, tentando renovar
meus gritos, me pergunto o que os vizinhos estarão pensando de mim, mas volto a me concentrar em meu interlocutor. O menino sabe de onde vêm os gritos que respondem aos seus.
Não vê meu rosto, como não vejo o dele, mas sei que pode perceber pelo meu
corpo que sou uma adulta, e parece não se inibir com essa constatação. Me
pergunto se minha adultez o confunde. Espero que não. Queria mesmo que meus gritos
sussurrassem em seu ouvido que a infância é possível, mesmo quando ela termina, como fazem os seus nos meus.
sexta-feira, 28 de maio de 2021
Uma capela para Maria Preta
quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Nunca precisamos tanto de um natal. Enfim, é Natal!
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Uma escola para pais e filhos serem felizes

segunda-feira, 22 de julho de 2019
Sobre ser Kihu e seus voos
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| Um bando de Kihus |
quarta-feira, 17 de julho de 2019
A estética da vertigem em "Todo cuidado é pouco"

sexta-feira, 24 de maio de 2019
Piedade pouca
Ao sair quarta à noite da PUC, universidade no coração da Zona Sul em que jovens burgueses pagam milhares de reais para estudar, passei por dois meninos ainda mais novos que os meus a vender balas. No fim da calçada, havia um rapaz preto e pobre deitado no chão a pedir dinheiro. Eu, como os outros, olhei para frente, como se em meu caminho não houvesse chão. Segui. Segui incomodada com a pobreza do outro, mas segui para a minha casa. Tomei banho para deixar a rua do lado de fora, jantei com os meus e dormi. Voltei ontem cedo para a PUC e, em meu caminho de ida, lá estava o rapaz, como se o tempo não houvesse passado, no mesmo lugar, com a pouca e rota roupa de antes. Ali, estava ele novamente a meus pés, com as pernas negras e os pés fortes esticados na calçada, como a formar uma barricada. Seus gestos continham a pressa dos que têm fome e o desespero dos que esperam por piedade. Ao ver-me disposta a abrir a bolsa e procurar por um trocado, o rapaz levantou as mãos em prece, como se saudasse um deus que dirigisse a ele sua graça, e, ao ver as moedas, abriu-as para receber tão acanhada piedade. Eram apenas quatro moedas. Quatro moedas que não somavam mais do que um real e cinquenta. Uma piedade tão pouca para gestos tão largos, que, ao dar as costas para ele e seguir em meu caminho, chorei. Apenas chorei. sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Eu, o jornal, os poetas e a vontade de habitar meu tempo
Jornal foi uma paixão na minha vida. Não me lembro de um dia sequer na minha infância em que ele não estivesse lá, nas mãos do meu pai, que abria aquelas páginas enormes, abundantes de notícias e anúncios impressos em papel frágil que manchava suas mãos. Eu, mesmo infante, não ficava alheia àquele mundo de adultos em que se discutia os rumos do país e da humanidade. Via o jornal quase como um oráculo dessacralizado que permitia ao leitor se debater contra suas previsões. Eram palavras ao vento, que mobilizavam moinhos. Um primo do meu pai, vizinho de nossa casa de campo, chegava a ficar rubro de raiva ao ler O Globo, que se alinhava à Ditadura Militar, e dizia, com uma voz firme que me parecia ampliada por um megafone, que lia O Globo para se irritar e o Jornal do Brasil para se informar. Nós, como ele, nos ligávamos ao mundo que deixávamos para trás, em busca da paz das férias no campo, pela cesta do seu Levi, um homem de meia idade que vendia jornal, biscoito de polvilho, doces, legumes e algumas conveniências raras em um lugarejo como Tebas, no interior de Minas Gerais. Era uma presença marcante, não por sua beleza, que não tinha, mas pela simpatia e acolhimento que sua figura de homem do campo, com vestes simples, sempre limpas e bem passadas, cabelos brancos, bochechas rosadas e mãos gordinhas, nos transmitia. Eu acompanhava as discussões políticas, das quais seu Levy participava, com a boca de menina toda suja de polvilho e os olhos atentos em um mundo que eu ainda não conhecia.Ele ia embora para cumprir o resto de sua jornada de trabalho e o jornal envelhecia na mão do meu pai e de seu primo. Passado o meio dia, o que as manchetes nos informavam já era notícia velha, sem serventia, e aquelas folhas enormes e sem refinamento iram servir à limpeza da casa ou ao embrulho de produtos que não exigiam grande higiene. Assim, aos poucos, sem me aperceber fui tomando gosto pelo jornal até que, um dia, me convenci de que estar nele seria uma maneira de participar da vida pública. Eu gostava de escrever e me sentia comprometida com a luta por um mundo melhor. O jornal me parecia o lugar certo para quem, como eu, queria denunciar as injustiças sociais na esperança de superá-las. Assim eu fiz. No derradeiro ano da Ditadura Militar, ingressei na Faculdade de Jornalismo da PUC-Rio certa de que estava saindo do meu mundinho para encontrar o mundo. Um mundo que imaginei possível de ser mirado da janela do prédio do Jornal do Brasil, por onde eu passava em todos os meus retornos ao Rio, e, por sorte ou capricho do destino, foi onde tive a minha primeira experiência em redação. Foi naquele prédio imponente, ancorado em frente ao porto, no início da decadente Avenida Brasil, que eu pisei pela primeira vez em um jornal. Era uma menina ainda, com minha maioridade recém-completa, quando a convite de José Carlos Monteiro, meu professor e então editor do Informe JB, entrei naquele salão enorme em forma de H e me deparei com o burburinho característico de uma redação de jornal. Um frisson produzido pelo tilintar das máquinas de escrever e pelo andar frenético de homens e mulheres para lá para cá, atendendo o telefone como se do outro lado da linha estivesse o presidente da República, o Chico Buarque ou o Pelé. Eles falavam alto como se não houvesse mais ninguém naquele ambiente, em que o tempo parecia acelerado e estranho a quem não estivesse ali. O que mais me impressionou foram os fios, muitos fios descendo do teto para as incontáveis mesas de trabalho. Eram materiais conexões com o mundo e, por isso, estar ali e não se imaginar em seu no centro era humanamente impossível. Essa centralidade a faculdade nunca me dera, nem mesmo insinuara e, ao longo
daquele primeiro ano de curso, fui me convencendo de que não mais me daria. Eu tinha pressa e me transferi para a faculdade de Sociologia e Política, onde o meu tempo pulsava com vigor. Vivíamos nosso dia a dia, nos corredores da PUC, como se o futuro dependesse de nós. Mas não. Eu continuava na borda, lutando para, como João Cabral de Melo Neto, habitar o meu tempo, para encontrar, como Octavio Paz, "a porta de entrada para o presente" e, assim, "ser do meu tempo e do meu século". Tempo que só experimentei de verdade em meu reencontro com o jornal, que aconteceria quase uma década depois do meu ingresso na universidade, com meu retorno à PUC e à faculdade de Comunicação. A porta que transpus para me sentir novamente no centro do mundo foi mais uma vez a do Jornal do Brasil, com sua redação, agora, silenciada pelo computador e diminuída pela arrastada crise que acabou definindo o fim daquele impresso que marcou a história da imprensa no Brasil. Ali, comecei minha carreira de jornalista, ali, aprendi quase tudo que sei de texto, foto, notícia e edição, ali, me senti finalmente habitando o meu tempo, o meu século. Habitando-o como eu podia, com todas as críticas e incômodos que ele me causava, mas habitando-o. O importante, como diz o poeta, era estar ali, enquanto ele ocorria, ao vivo. Foram doze anos de redação. Do Jornal do Brasil fui para O Globo e de O Globo para assessoria de imprensa. Mantive-me na política, razão da minha paixão pelo jornal, e, assim, continuei, mesmo de fora, a fazer parte do mundo das redações. Eu de um lado, repórteres de outro, todos a favor da notícia e eu, sempre, indo ao encontro do meu tempo. Mas o meu século acabou e veio outro, ainda meu, apesar de estranho tempo em que o jornal já não está mais no centro do mundo, em que o mundo não tem mais centro e todos, inclusive eu, vivemos nas bordas. Minha luta, agora, é para habitar as bordas e alargá-las na busca de uma entrada para um novo presente, um novo tempo, um novo século.
quinta-feira, 11 de outubro de 2018
O olhar mágico de Lúcia Hiratsuka sobre o mundo

domingo, 2 de setembro de 2018
O cão que os meninos sempre quiseram ter
Chegamos no Porto, dia 16 de julho, depois de uma gostosa temporada em Lisboa, onde tivemos o primeiro e encantador contato com Portugal. No Porto, encontramos uma cidade diferente em tudo de Lisboa. No clima, mais quente; no colorido do céu e dos edifícios, mais cinzento; na geografia, mais plana; no desenho urbano, mais moderno; e na atmosfera, dominada pelos grasnados das gaivotas que sobrevoam a cidade todo o tempo, mais misteriosa. Uma cidade bonita, com bairros nobres de belas casas, sítios históricos bem preservados e animados, como a beira do Rio D'Oro, curiosidades, como a Livraria Lelo e a casa natal da poeta Sophia de Mello Breyner Andressen que, hoje, abriga a interessante Galeria da Biodiversidade, enfim, muita coisa bacana para ver e fazer. Mas Porto ficará em nossa memória como a cidade em que decidimos aumentar a família, com a promessa de que daríamos um cão para os meninos. Um cão sonhado por anos que fazia com que os dois, de tempos em tempos, voltassem contra nós, pais temerosos de assumir mais essa responsabilidade, suas baterias, com insistentes e suplicantes pedidos. Até que, um dia, no Porto, a estratégia deu certo. Não me lembro, confesso, como o papo começou. Mas eles, de olho comprido em todos os cães que viam na rua, passaram todo nosso primeiro dia de passeio na cidade mais preocupados em escolher uma raça e um nome para o cachorro que não tinham, do que com sua paisagem urbana e secular. A brincadeira foi ganhando um corpo tão robusto que, em alguns momentos, eles se esqueciam que nada daquilo era verdade e se viam certos de que o cão já era uma realidade, como se estivesse ali, unido a eles por uma guia e muito amor. O assunto dominou todo o dia, até quase nos levar a loucura. Em busca de paz, apelei.- Antônio, vai escolher um livro pro cachorro - disse, enquanto fuçávamos as estantes da Livraria Lello.
Surpreso com a sugestão, buscou a palavra segura do pai.
- Cachorro sabe ler?
- Sim - o Cadoca confirmou, vendo nessa resposta a possibilidade de se livrar da insistência do filho.
- Mas ele já nasce sabendo? - quis detalhes, enquanto folheava um livro na esperança de achar um que agradasse ao cão que não tinha.
Eu, que escolhia um livro, não consegui deixar de prestar a atenção ao diálogo mais do que improvável do meu menino com o pai e, depois de ver o empenho dele, quedei-me culpada por o estar enganando e confessei.
- Antônio, deixa de ser bobo. Você há viu um cachorro que saiba ler?
O muxoxo que se seguiu não conseguiu apagar de sua carinha o ar feliz de um dono de cão leitor.
- Pô, eu tava acreditando - disse, escondendo um sorriso envergonhado.
E, sem se abater, continuou, em uma forte aliança com o Pedro, que sonha com um cachorro há mais de uma década, a acreditar que nos dobraria. Os dois falaram de tudo, prometeram tudo, imploraram tudo e, vencidos, foram deitar abandonando suas esperanças. Foi, então, que o Cadoca, com o coração de pai amolecido pelas súplicas, olhos vermelhos e olhares derramados para qualquer cão que aparecesse na rua, decidiu ceder. E, na cabeceira da cama deles, prometeu.
- Meninos, nós vamos ter um cachorro. Quando chegarmos no Rio, escolhemos a raça, tá bem?
O Antônio explodiu em lágrimas, as mesmas que corriam tristes e disfarçadamente minutos antes, e o Pedro vibrou como em fim de campeonato. A surpresa logo cedeu à euforia e os dois se abraçaram, rolaram na cama, comemoram e, por fim, dormiram sonhando com o cão que eles sempre quiseram ter. Aquele cão que povoou a infância deles por meio de livros, como o do Otto, bonecos de pano e simples e poderosas fantasias. Ele ainda não chegou, mas como o Pedro bem disse, é como se ele nunca estivesse estado longe de nós.
terça-feira, 28 de agosto de 2018
A ida e a volta de uma aventura transatlântica
Visitamos Óbidos, no dia 11 de julho, poucos dias depois de chegarmos a Portugal. Uma cidade linda, mas, como um cenário, sem alma. De início, ficamos impressionados por sua muralha medieval e suas casas acanhadas se amontoando em vielas e ladeiras. Todas brancas, coloridas apenas pelo azul e amarelo que nos acostumamos a ver em nossa arquitetura colonial, e ostentando flores nas janelas que compõem um bucólico cenário. Uma impressão que foi se esvaindo à medida em que avançávamos por seus desvios. As casas, outrora habitadas pelo povo da cidade, servem hoje a lojinhas que vendem quinquilharias indianas, lembranças industrializadas que se pode achar em qualquer canto do país, miniaturas de cavaleiros medievais, comida e ginga, a aguardente típica da cidade. Para completar, a cidade é lotada de turistas que andam de cá para lá sem qualquer objetivo a não ser estar dentro das muralhas de Óbidos. Não há muito para ver, além das casas e vielas, que, lotadas, não nos permitem nenhuma experiência sublime. O Pedro me pergunta se as casas são também moradia. Digo que sim. Mas, logo, sou desmentida pela moça que nos atende na Fundação José Saramago, instalada em típica casa do lugar. Ela nos explica que a grande maioria dos moradores deixou as muralhas para se instalar na cidade nova, como ela, uma jovem que pouco sabe da história de Saramago. Fazemos uma pausa na fundação, vemos as fotos expostas, olhamos a estante em que há as edições portuguesas dos livros do autor e algumas traduções, os meninos se divertem correndo pelas escadas, aproveitamos o banheiro e saímos. De volta à rua e à pequena multidão que se aglomera por lá, seguimos para o alto da vila, onde fica a famosa livraria instalada em uma igreja. A inadequação do lugar a seu uso é clara e as estantes se ajeitam como podem no lugar onde antes haviam bancos para os fieis. Confesso que, não fosse o inusitado da coisa, não teria gostado da livraria. Mas só entendemos o uso exótico do templo, em Évora, onde um católico nos informou que há muitas igrejas abandonas em Portugal, por causa da crise de vocações religiosas. De novo na rua, nos reunimos e decidimos voltar para Lisboa, em busca de um restaurante sem as moscas que infestam Óbidos, não sem antes dar uma paradinha para comprar um queijo de cabra, parada que rendeu uma rica conversa transatlântica. - Mãe, os brasileiros que vem morar em Portugal têm que aprender português - Antônio perguntou, interrompendo minha negociação com o dono dos queijos.
- Não, Antônio, falamos a mesma língua que eles. A diferença que você está percebendo é apenas o sotaque, algumas palavras e expressões. Mas isso não impede de nos entendermos - expliquei, rindo de sua lógica de menino.
- Vocês falam português, como nós - emendou o simpático senhor que nos atendia -, afinal, fomos os primeiros a chegar ao Brasil.
- Não foram, não - eu disse, sem nenhum traço de raiva na voz -, os índios é que foram os primeiros.
- Mas fomos nós quem descobrimos o Brasil - replicou o português, meio desconcertado com a minha negativa.
- Não foram, não - repeti -, vocês não descobriram o Brasil, vocês o colonizaram - eu disse, com tamanha convicção que o homem preferiu calar-se.
O Antônio que, sem querer, causara o constrangimento, aproximou-se do pai e do irmão para contar o diálogo e, rindo, me acusar de querer arrumar confusão com o simpático português. O que ele não contava era com a reação do Pedro, que ficou do meu lado com entusiasmo.
- Minha mãe tá certa. Eles são colonizadores, não são descobridores de nada - disse, em tom inflamado.
A indignação do Pedro o guiou por Portugal e o Sul da Espanha e nos fez pensar sobre nossas relações com os colonizadores e nossos laços com a Europa, a matriz do Ocidente cristão do qual fazemos parte, mesmo que com pé dentro e outro fora. Questões que estiveram presentes em quase todos os lugares que visitamos, desde as igrejas banhadas a ouro e prata latino-americanos, até os sítios arqueológicos que mostram que a história de nossos colorizadores foi marcada por uma longa e sangrenta luta pelo território. Questões que eclodiram nos comentários que o Pedro e o Antônio deixaram no livro de visitas do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. O primeiro denunciou o sofrimento dos povos nativos, no Brasil português, e, o segundo, a superioridade de Pelé sobre Euzébio. Mas há quem, como Lúcia Fidalgo e a ilustradora Andréa Resende, faça isso de forma poética, nos reaproximando daquele povo que arriscou-se no mar em busca de novos territórios. "Pedro, menino navegador", que infelizmente saiu de catálogo com o fechamento da Manati Editora, é um belo exemplo de como apresentar para crianças uma questão tão complexa. Não nos deixa esquecer a aventura épica que foi as navegações e, ao mesmo tempo, a violência da colonização. Vale a pena procurá-lo em sebos. Deixo, aqui, um pouco de Fernando Pessoa, como homenagem aos portugueses que lá nos acolheram com carinho, 500 anos depois de darem com os costados em nossas terras.
domingo, 1 de julho de 2018
Um passeio por uma loja de brinquedos do Rio
- Pedro - chamei alto, já apavorada, tentando me controlar.
Nada. Nada dele responder ou aparecer. Fiquei em pânico, pensando na possibilidade de não encontrá-lo mais. A Dulce, mãe de dois filhos grandes, tentou me acalmar. O Cadoca, apesar de inseguro como eu, manteve a calma e foi logo pedir ajuda aos seguranças.
- Nosso filho sumiu, o senhor pode nos ajudar - pediu.
Na mesma hora, o homem comunicou a seus pares, por um rádio-transmissor, que um menino de quatro anos, vestido com um shortinho estampado e uma camiseta laranja, calçando uma sandália Ortopé, estava perdido no shopping. Voltando-se para nós, explicou.
- Quando uma criança se perde, todos os seguranças observam as portas para impedir que elas saiam do shopping. Os senhores podem ficar calmos, nós vamos achar o menino - disse para nos tranquilizar e completou - Vamos começar a procura pela loja de brinquedos, aqui do térreo. Mais de 90% das crianças que se perdem são encontradas na loja de brinquedos.
Ela não estava longe e corremos todos para lá. Eu, Cadoca, Dulce e o segurança. A loja é uma das maiores do shopping. Grande, com enormes vitrines, porta larga e escancarada, atendentes sorridentes e muitos, muitos brinquedos cobrindo o chão, as paredes e se exibindo para os curiosos. No fundo da loja, estavam dispostos os brinquedos para bebês e crianças pequenas. Coloridos, sonoros, enormes e convidativos. Na frente deles, contemplativo, estava o Pedro olhando-os atento, ignorando nossa procura. Diante da parede ocupada por brinquedos de alto a baixo, parecia ainda menor do que era. Ao vê-lo, toda a minha angústia explodiu e caí no chão, de joelhos, para abraçar meu pequeno, recuperado, de volta ao ninho. Ele me olhou espantado, sem entender tanto nervosismo e choro, e, silenciosamente, com aquele olhar exclusivo das crianças, se indagou se eu estava perdida.
domingo, 10 de junho de 2018
Água bastante
domingo, 13 de maio de 2018
Eu e, sempre, eles
@Fotos Macarena Lobos e Claudio Oliveira
quinta-feira, 15 de março de 2018
A Marielle que habita em cada um de nós
Um calor como o de hoje. Um dia castigado por um sol inclemente que não nos dá conforto nem para chorar a morte. Não choro por nenhum dos meus. Choro por Marielle, a vereadora das margens que lutava por um Rio para todos, e por seu motorista Anderson Pedro Gomes, invisibilizado pelo forte significado da morte da parlamentar. Choro sozinha, em casa, onde permaneço cuidando de meu filho pequeno que sofre há dias com falta de ar. Uma falta de ar literal, que o angustia e assusta, assim como aquela asfixia metafórica que nos acometeu no instante da notícia da execução da vereadora.
Na Cinelândia, uma multidão vela Marielle e clama por justiça. São tantos os olhares que se encontram incrédulos com o rumo que as coisas tomam no Rio e no Brasil, que há mais dúvidas do que certezas. Estão todos ligados pelo assombro causado pelo recado surdo das balas que fizeram tombar Marielle e seu motorista. Até quando? Até aonde eles vão? Perguntam-se todos.
Marielle não viveu como heroína, apenas exerceu plenamente a condição humana de ser político. O que, então, a faz diferente de nós? Talvez o fato de ter exercido essa condição à moda antiga, sem pensar em todo instante nas urgências de seu corpo. Sem pensar somente em comer, beber, viver e evitar a morte. Um compromisso com o que é de todos que a fará eterna na lembrança daqueles que lutam, mesmo que sua vida tenha sido tão banal quanto a dos milhares de homens e mulheres que votaram nela.
As balas que a calaram foram as mesmas que a transformaram em heroína e mártir. Mas elas não foram dirigidas apenas a Marielle e a seu motorista, mas a todos nós, mulheres e homens de vida banal. O recado claro - manda quem pode, obedece quem tem juízo – não precisa ser levado em conta. Nós temos escolha. Mas para escolhermos o caminho de lá e ignorarmos aqueles que julgam mandar e exigem nossa obediência, precisamos olhar para Marielle pelo menos mais uma vez. Precisamos viver como Marielle, sem a pretensão de sermos heróis ou mártires, pensando menos em apenas comer, beber, viver e evitar a morte e mais em exercermos nossa condição humana.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
A foto na cabeceira da minha avó
Tenho muitas lembranças da minha avó materna, que, mesmo morta, ainda
faz parte da minha vida. Ela não era uma mulher de fácil leitura. Cresceu e
viveu em um pequeno mundo e, nele, se movia obedientemente como se não lhe
impusessem limites. Exibia uma beleza discreta, a permitida em seu meio social,
e deixava transparecer uma alegria quase envergonhada e alguma tristeza. A
maior delas, com certeza, a morte prematura do filho, com 21 anos. Um filho que
não conheci e, por isso, nunca chegou a ser meu tio. Dele tenho apenas a
lembrança do retrato na mesa de cabeceira da minha avó.OBS: Peço desculpas por não ter falado de um livro para crianças, nem dos meus filhos. Quis olhar para trás, falar da memória. Da foto na cabeceira de minha avó. Das perdas de quem viu sua casa ruir na tragédia do Palace II, que completou ontem 20 anos.
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
Um sopro de possibilidades na primeira manhã de 2018
Hoje é o primeiro dia de um novo ano que promete ser osso duro de roer. Um ano depois de outro ano difícil, em que perdemos muito, aqui no Brasil, mas ganhamos a certeza de que a vida é isso: luta. Mas para lutar é preciso também alguma ternura, ou melhor, é preciso poesia. A liberdade e a fantasia, ao contrário do que ouvimos, desde crianças, não são escapismo, são possibilidade. A arte é isso, liberdade, fantasia e possibilidade. Eu diria, parafraseando Ferreira Gullar, que a arte é essencial quando a vida falha. É dentro de seu círculo, ou extrapolando seus limites, que a vida se amplia, promete o que nos parece impossível e nos faz mais humanos. As crianças vivem a permanência desse estado de possibilidade, negado a nós pelo racionalismo que nos rege no mundo da produção, por experimentarem a liberdade e a fantasia em seu cotidiano. Uma experiência singela, difícil de ser captada por nós, adultos, sempre tão rasos e complexos, mas encantadora, como é o livro Lina e o Balão, da japonesa Komako Sakai, editado pela Pequena Zahar e traduzido por Lúcia Hiratsuka, sempre tocada por um olhar infantil. A narrativa trata da relação de Lina com um balão de gás e é construída em um texto que preserva a inocência da criança e por delicadas ilustrações que trazem em seus traços um ar retrô, que nos remete a um tempo em que a infância era protegida das verdades da vida. A menina de Komako é quase um neném e brinca com seu balão, como se ele tivesse vida. E tem. Atravessado pelo olhar mágico de Lina, o balão vira um amigo constante e sua "fuga" lhe impõe verdadeiro sofrimento. A sorte da menina é ter na mãe uma parceira nessa viagem tão rica que somente a liberdade e a fantasia podem proporcionar. Lina segue se relacionando com o balão, sem ser confrontada com a racionalidade uma única vez. Uma viagem que amplia as possibilidade do "mundo real" e pode tornar a vida ainda mais rica. Uma viagem que, infelizmente, está cada vez mais sendo negada às crianças, em nome de verdades que irão prepará-las para a vida, como se a vida que levamos não fosse o fruto da liberdade e da fantasia humana. Uma história para nos enternecer e, sobretudo, para nos lembrar que a infância é um tempo de possibilidades e devemos não apenas deixá-la se manifestar, mas nos inspirar nela. Que o olhar de Lina sobre o balão nos sirva de bússola para atravessarmos 2018.
sábado, 23 de dezembro de 2017
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
sábado, 18 de novembro de 2017
'Mundo cruel' nos convida a pensar sobre o mundo
Em meio a tantos manuais de boa conduta (que dizem respeito à etiqueta ou ao politicamente correto) e de livros que prometem o caminho da roça para as grandes questões da educação das crianças, é possível achar nas fornidas estantes das grandes lojas do ramo um envelope contendo 14 cartelas, com mais de 100 perguntas e nenhuma resposta, como se estivesse a nos sussurrar: "arrisque-se". Pois vale a pena arriscar-se e puxar da estante Mundo cruel, o mais novo livro, ou quem sabe ficheiro, da Boitatá Editorial, o selo filhote da Boitempo, para o público infantil e juvenil, que trata de situações que dizem respeito a um único e mais do que atual tema: a crueldade. O conceito do livro desenvolvido por Ellen Duthie, também autora dos textos, é, por si só, um novo caminho para ensinarmos nossas crianças a pensar. Ou, como diria Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia da PUC-SP, um não-caminho, que mostre a elas que é preciso "duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho". Essa liberdade deve ser o espírito de quem se aventura a abrir o envelope, com projeto gráfico e ilustrações de Daniela Martagón, que usa de modernas técnicas de comunicação visual para instigar a criança a pensar de forma filosófica sobre acontecimentos aparentemente banais, como uma menina a matar uma formiga, até grandes questões contemporâneas, como experiências científicas com seres vivos. Em todas elas o que está em questão é a crueldade, vista como um conceito. Um conceito que se funda na cultura e se transforma na história. Quem de nós, com mais de 50 anos, não matou uma formiga pelo simples prazer de matá-la, com a mesma cara sádica da menina do cartão? Uma atitude que hoje está em julgamento. Mas será que ela é cruel? É o que nos pergunta o cartão, que traz uma série de perguntas que nos obrigam a relativizar nossa resposta, nos fazendo indagar se elas sentem dor, a razão de queremos matar formigas, se é legítimo matá-la se ela nos tiver picado, se pode ser bom matar formigas, quantas podemos matar e por aí vai. Nas indagações sobre crueldade feitas pelo livro há lugar também para as comparações, que sugerem que nem sempre o que nos parece cruel o é, como é o caso de um leão que come cabritinhas. Será que ele pode se alimentar de outra coisa? Caçar para se divertir é diferente de caçar para comer? São algumas das perguntas feitas às crianças, que me fizeram lembrar de uma velha história de família, em que meu irmão mais novo, espantado com a sala de troféus de caça da casa de um amigo rico de meu pai, perguntou angustiado para minha mãe se o dono daquelas cabeças de bicho caçava por não ter o que comer. A pergunta de meu irmão, ainda uma criança, ficou para sempre, em nossa família, como uma máxima para expressar a crueldade cometida por um homem que se divertia matando animais. Uma máxima que poderia ter saído de uma conversa com as fichas de Mundo cruel. Uma conversa que, como diz a autora em uma entrevista o site do projeto Wonder Ponder, tem por objetivo apenas mostrar que "a vida é estranha, o mundo é misterioso e os seres humanos estão repletos de contradições". Ensinar esse olhar aos filhos tem sido o maior de todos os desafios em um mundo em que, apesar de não haver mais verdades ou modelos, a palavra de ordem tem sido o pensamento único. Um mundo, que apesar de sua ode à diversidade, ainda não derrotou a certeza. Certezas sejam elas conservadoras ou progressistas, mas sempre certezas. Isso me parece contraditório com a ideia de que a cultura da diversidade envelheceu o conceito de tolerância, que pressupõe um lugar ordinário de onde aceitamos o não ordinário, e nos pede agora naturalidade nesse mundo de diferenças. Por essas e por outras, nunca foi tão pertinente indagar sobre o mundo que vivemos. O risco contido nessas perguntas, não pode nos fazer nos esquivar delas. Como disse a autora, a filosofia é rebeldia. "Quando filosofamos nos atrevemos a questionar todas as certezas que nos são dadas e as que cremos haver construído até o momento sobre o mundo e sobre nossa relação com o mundo." Uma liberdade que pode nos levar a questionar até o próprio mundo e nos instigar a querer transformá-lo.















